Sumidoiro's Blog

01/04/2011

NA GUERRA E NA PAZ

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 7:27 am

♦ A história de um pintor

Inúmeros viajantes pintores estiveram no Brasil no passado, produzindo vasta documentação visual. Muitas obras foram preservadas, mas se perdeu talvez a maioria. Esse descaso pelas memórias nacionais perdura até hoje, por toda parte. É oportuno chamar a atenção para um desses artistas esquecidos, que tem um quadro muito admirado no “Museo Provincial de Bellas Artes”, em Salta, na Argentina. O autor é Carlo Penuti, italiano, que chegou ao Brasil, circulou pelos vizinhos Uruguai, Argentina e, tendo retornado ao país, viveu em vários lugares vendendo seu trabalho.

Salta, carinhosamente chamada “Salta la linda”, por Penuti, 1,82 x 0,95 m.

O professor Eduardo M. Ashur(1) denominou-a “Uma pintura de muitas histórias”, pois se trata do documento iconográfico mais importante sobre Salta no século XIX. É uma vista panorâmica, pintada em 1854. A obra revela imagens antigas, como a igreja de São Francisco, cujas torres só foram terminadas trinta anos depois, e a Praça 9 de Julho, que era chamada Praça General Urquiza, despida de vegetação e bancos, como ocorria na maioria das cidades hispano-americanas. Também mostra a igreja da Companhia de Jesus, sem sinais de ter sido sequer iniciada a construção da atual.

O AVENTUREIRO

Além da atividade artística, Carlo Penuti se envolveu com movimentos revolucionários. As investigações mostram que o pintor se aproximara do célebre Giuseppe Garibaldi(2) quando se achavam no Brasil. Entretanto, não há como afirmar se vieram juntos da Itália. Sabe-se que Garibaldi “desembarcou na capital […] em um dia não preciso de janeiro de 1836.” Até “5 de abril de 1848, […] viveu na América do Sul, nos três países da costa atlântica: Brasil, Uruguai e Argentina.” (3) O revolucionário combateu o poder imperial, chegando a comandante da marinha na Revolução Farroupilha, que teve reflexos em Laguna (Santa Catarina), bem como influenciou na Revolução Liberal(4) de 1842. Suas ligações com os brasileiros se tornaram mais fortes ao se unir à brasileira Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva – Anita Garibaldi (5) – que conheceu em Laguna. Anita se tornou sua companheira de muitas lutas na América do Sul e, mais tarde, na Europa.

No Uruguai, durante a chamada “Guerra Grande” (6), Penuti participou da “Legião Italiana” (7), no chamado “Sitio de Montevideo” (1843/1851), sob as ordens de Garibaldi. Passando por Buenos Aires, trabalhou como diretor do “Imprenta Volante” , publicação do “Ejército Grande”, comandado pelo general Justo José de Urquiza(8), que esteve em conflito com o exército de Juan Manuel de Rosas(9), quando este pretendeu incorporar os territórios do Uruguai e Rio Grande do Sul. A batalha final foi vencida pelas forças de Urquiza, com o apoio dos aliados uruguaios e brasileiros, no dia 3 de fevereiro de 1852, e ocorreu em “Caseros” (10), nos arredores de Buenos Aires. O pintor Penuti esteve presente e realizou vários desenhos documentando cenas do combate, depois transformados em litografias. Durante sua convivência com Urquiza, pintou dois retratos do general. Com tais amizades, se vê que Carlo Penuti era apaixonado pela política, como de fato ficou demonstrado no decorrer das suas andanças.

Batalha de Monte Caseros, litografia por Carlo Penuti e Alejandro Bernheim.

A PAISAGEM

Chegou à cidade de Salta no ano de 1854, que fica na província de mesmo nome, no noroeste argentino. Certo dia, subindo ao morro São Bernardo, ficou deslumbrado com a bonita paisagem onde viu o casario branco se esparramando pelo Vale de Lerma. Ali, no alto, montou o cavalete e pintou o quadro que ficaria famoso. O segundo passo seria a venda do trabalho mas, enquanto lá esteve, não conseguiu o seu intento. Como pretendia seguir viagem, encarregou dois amigos de fazerem outra tentativa, através de uma rifa, atribuindo a cada número o valor de cinco pesos.

Felizmente, conseguiu esse pouco dinheiro pela sua obra, vendida para o governo da província, que adquiriu todos os bilhetes. Foram encontrados recibos contendo a autorização para efetuar o pagamento a Solano Cabrera e a Benjamín Tejada, datados de 5 de março de 1855, indicando a compra “a fin de que quede el Estado dueño del quadro”. A pintura foi a primeira aquisição museológica de Salta e pertence ao acervo do “Museo Provincial de Bellas Artes“.

Gravura da batalha de Monte Caseros e retrato do general Urquiza, por Penuti.

O RETORNO

A pesquisadora Magna Domingos(11), falando sobre fotógrafos e retratistas em Mato Grosso, informa que os jornais noticiaram a presença de Penuti em Cuiabá, a partir de 1860. Aí fizera sua propaganda através do jornal “A Imprensa”, durante uma permanência de pelo menos três meses, de junho a agosto. Ora, o pintor deve ter retornado ao Brasil, imaginando encontrar, em lugares longínquos mas prósperos, clientela que lhe proporcionasse satisfatório retorno financeiro. Era seu hábito publicar anúncios informando sobre os serviços oferecidos, as técnicas que dominava, o preço por retrato, a roupa sugerida para os retratandos, os melhores horários para posar e o período de permanência na cidade.

Retratos por Penuti, pintados em Ouro Preto: mulher não identificada (0,795 x 1,00 m – foto Victor Stuts) e poeta Bernardo Guimarães.

Anos depois, passou por Ouro Preto (MG), onde teria montado ateliê, da mesma forma como fizera em outros lugares. Ali existe um trabalho seu, um retrato de mulher, que hoje pertence ao acervo da Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Dessa mesma temporada, deve ter sido o retrato do romancista e poeta Bernardo Guimarães(12) – famoso pelo livro “A escrava Isaura” –, que está reproduzido em “Poesias Completas“, edição de 1959.

Doze anos após a passagem por Cuiabá, se dirigiu a Curvelo, em 1872, onde encontraria interessados pelos seus retratos. Dessa época existem duas pinturas, uma de Felicíssimo de Souza Vianna(13), a outra de sua mulher, Maria Sérgia Pereira da Costa(14), que pertencem a um colecionador de Belo Horizonte (MG). É posível que existam outras, em posse de quem não saiba seu verdadeiro valor, principalmente histórico. Há informação de mais um retrato pintado em Curvelo. Isso foi revelado pelo filho de Felicíssimo, Augusto Vianna do Castello(15), em uma correspondência ao historiador Antônio Gabriel Diniz: “… Eu o observava (o tio Cândido de Souza Vianna) com curiosidade infantil, porque muito me impressionara o retrato a óleo, pintado pelo Carlo Penuti, que ele tinha na sala de visitas, fardado de coronel da guarda nacional, de que era o comandante na comarca de Paraopeba.”

Maria Sérgia e Felicíssimo de Souza Vianna, por Penuti. Óleo sobre tela, + – 0,90 x 1,10 m.

Felicíssimo era rebelde, inquieto, sempre fez política. Foi um dos líderes e combateu na Revolução Liberal, de 1842. Sofreu as dores e as desagradáveis consequências da derrota, mas nunca se deu por vencido. Permaneceu defendendo seus ideais, tendo sido um político muito ativo e respeitado em sua terra. Um de seus filhos, João Baptista de Souza Vianna, se inscrevera no batalhão dos Voluntários da Pátria(16), participando da invasão do Paraguai e da célebre retirada da Laguna(17). De Curvelo foram 62 combatentes e também oferecida, por subscrição pública, grande colaboração em dinheiro. João Baptista teve uma participação heróica, retornando no posto de tenente.

A notícia do fim da guerra, na qual muitos perderam a vida, chegou à cidade no dia 2 de abril de 1870. Palavras do historiador Antônio Gabriel Diniz: “Houve três dias de festas. […] Na vila estrondosa recepção. Esfuziavam fogos. Não ficou ninguém em casa. Pais sorridentes. Mães choravam de alegria. Tristonhos, mas presentes, só os pais, parentes e noivas dos que nos campos de batalha deixaram a vida com heroísmo, em defesa da pátria”. (18) Por essas e por outras, para Felicíssimo deve ter sido uma grande alegria conhecer Penuti, aventureiro na guerra e na paz. Enquanto o modelo posava, devem ter surgido muitas memórias de guerra para contar, dos dois lados.

Bem ensinou o semiólogo Umberto Eco(19): ao espectador é permitido lançar o olhar e “conversar” com a pintura, pois a verdadeira obra de arte é aberta. Aos curiosos, basta viajar na imaginação e ter o prazer de completar o que ficou faltando, tanto dos retratados quanto do pintor Carlo Penuti. Pode ser boa receita para iniciar uma pesquisa.

Por Eduardo de Paula

Colaboração: Berta Vianna Palhares Bigarella

(1) ASHUR, Eduardo Moisés: professor de história, na Faculdade de Humanidades da Universidade Nacional de Salta.

(2) GARIBALDI, Giuseppe: general, guerrilheiro, “condottiero” e patriota italiano (*04.07.1807 +02.06.1882). Participou de conflitos na Europa e América do Sul, sendo chamado de “herói de dois mundos”.

(3) CANDIDO, Salvattore – “Giuseppe Garibaldi, corsário riograndense”, EDIPUCRS, 1992, p. 23.

(4) Revolução Liberal: vide o Post “Crônica da Grande Sabará (V)”.

(5) GARIBALDI, Anita – Ana Maria Ribeiro da Silva, natural de Morrinhos, município de Laguna, Santa Catarina (*30.08.1821 +04.08.1849). Abandonada pelo marido, passou a viver com Giuseppe Garibaldi.

(6) “Guerra Grande”: guerra civil uruguaia (1839-1851), em consequência do conflito entre as facções “blancos” e “colorados”, com envolvimento da Argentina e Brasil.

(7) “Legião italiana”: pequena força revolucionária, formada por italianos voluntários que tinham procurado refúgio no Rio da Prata.

(8) URQUIZA, Justo José: general que comandou as tropas argentinas que combateram Juan Manuel de Rosas.

(9) ROSAS, Juan Manuel de Ortiz: ditador que pretendeu incorporar o Uruguai e o Rio Grande do Sul à Argentina

(10) “Monte Caseros”: batalha ocorrida em Morón, a 30 km a sudoete de Buenos Aires, em 03.02.1852, em que tropas argentinas, urauguaias e brasileiras (Grande Exército) derrotaram Rosas.

(11) DOMINGOS, Magna – “Mato Grosso, território de imagens”, edições AROE, Mato Grosso, 2008, p. 150 e 151.

(12) GUIMARÃES, Bernardo Joaquim da Silva – Ouro Preto: *15.08. 1825 + 10.03. 1884.

(13) VIANNA, Felicíssimo de Souza – (*16.02.1812 / +16.04.1900, às 6 h da manhã). Vide neste Blog: “Viannas e o Castello”, “Viana, a terra, o nome”, “No tempo do imperador” e “No alto daquela serra”.

14) COSTA, Maria Sérgia Pereira da – (*12.01.1830 +02.10.1905).

(15) CASTELLO, Augusto Vianna do – (*08.10.1874 +23.09.1953); ministro da Justiça e Negócios Interiores no governo Washington Luís.

(16) “Voluntários da Pátria”: corpo de soldados criado pelo governo, para reforçar o contingente brasileiro na Guerra do Paraguai .

(17) “Retirada da Laguna”: trágica retirada das tropas brasileiras na localidade de Laguna, Paraguai. Não confundir com Laguna, Santa Catarina.

(18) DINIZ, Antônio Gabriel – “Dados para a história de Curvelo (I)”, Editora Comunicação, 1975, p. 173 a 178.

(19) ECO, Umberto – “Opera Aperta”, 1962. 

 

11 Comentários »

  1. Eduardo de Paula: Muito justo e elegante relembrar um artista cuja história de vida no Brasil se esvai na voragem do tempo. Ao cita-lo, surge a saudável lembrança e não o sabor amargo da saudade. Mais uma vez, parabéns pelo brilho dos seus registros. – Maria Marilda.

    Comentário por maria marilda pinto correa — 04/04/2011 @ 10:58 am | Responder

    • Marilda: Suas gentis palavras acrescentam delicadeza à história do pintor. É assim que devemos viajar ao passado, com respeito e procurando aprender com os que vieram antes de nós. Muito obrigado pelo estímulo. Um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 05/04/2011 @ 2:10 pm | Responder

  2. Eduardo, fico encantado com sua erudição, seu amor pela pesquisa e pela originalidade dos temas! Parabéns! Ótimo! Abs. Arthur.

    Comentário por arthur diniz — 10/12/2011 @ 7:01 pm | Responder

    • Arthur: Suas palavras têm um grande significado para mim. Muito obrigado, pelo estímulo.
      Um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 10/12/2011 @ 8:18 pm | Responder

  3. Estimado Eduardo: Muy buena historia, excelente investigación. Una digna manera de honrar a nuestros predecesores rioplatenses. Cordiales saludos. Roberto

    Comentário por Roberto Rodriguez Chentola — 14/12/2011 @ 5:21 pm | Responder

    • Roberto: Muito obrigado pelo gentil comentário. Estou tentando descobrir mais fatos sobre o pintor Penuti, que esteve aí na sua terra. Já encontrei mais dois retratos pintados por ele e pretendo mostrá-los no meu Blog.
      Cordialmente, Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 14/12/2011 @ 6:45 pm | Responder

  4. Olá. Muito obrigada pela pesquisa, existe muito pouco sobre C. Penuti. Esta passagem por Ouro Preto, você teria mais material a respeito dela? Como data ou alguma fonte que cita isso? Obrigada.

    Comentário por Cibele — 10/07/2017 @ 5:02 pm | Responder

    • Cibele:
      O que sei sobre Penuti está no meu Post. Contudo, creio que seja possível descobrir mais alguma coisa sobre ele numa pesquisa mais apurada.
      Um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 12/07/2017 @ 7:48 am | Responder

  5. Prezado Eduardo,

    Excelente artigo sobre Carlos Penuti. Há uma obra dele na cidade de Sabará que, coincidentemente ou não, é muito parecida com a pintura da mulher não identificada em Ouro Preto. / Abraço, Bruno.

    Comentário por Bruno — 10/06/2023 @ 10:48 pm | Responder

    • Bruno: Gostaria de ter uma cópia dessa obra. Um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 11/06/2023 @ 11:13 pm | Responder

      • Eduardo, para qual email posso enviar a foto do quadro?

        Comentário por Bruno — 12/06/2023 @ 9:41 am


RSS feed for comments on this post. TrackBack URI

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.