Sumidoiro's Blog

01/08/2020

MUITO VERMELHO

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 7:40 am
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♦ O tempo todo, por toda parte

Tudo que se vê tem origem na energia eletromagnética. Ela chega aos olhos estimulando células especializadas que existem na retina, chamadas cones e bastonetes. São sensores de configurações, texturas e cores e, como consequência, de imagens. Conectadas ao nervo ótico, remetem mensagens ao cérebro, onde há que se produzir formas por completo(1). Afinal de contas, tratam-se de elaborações mentais, que variam de pessoa para pessoa e de acordo com a capacidade perceptiva de cada uma.

Esta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-arco-icc81ris-objeto.jpgProjeções de luz solar, decomposta através de um prisma de cristal.

COR E PALAVRA

      Vermelho é cor primária de energia luminosa, tal como aparece no arco-íris. Nesse caso, as duas outras primárias, que vão formar o trio fundamental, são o verde e o azul, melhor dizendo, azul-violeta. Desse conjunto surgem as demais, cada qual com seu nome. Bem entendido, fala-se de luz*. Contudo, além do arco-íris, ao se tratar das demais cores que entram pelos os olhos, muita coisa pode ser diferente, especialmente quando se fala das cores materiais*. Quase sempre bem diferentes, até mesmo nas palavras!  * CORES DE TINTA. As primárias são vermelho-magenta, amarelo e azul-ciano.

A palavra vermelho é proveniente do latim vermiculus, diminutivo de vermis. Nesse caso, foi tomado no sentido de parasita. Na verdade, vermiculus não é um verme, mas um inseto – coccum* – do qual se extrai o corante cocccinus**vermelho-carmim(2). Ele vive e tira seu alimento de um carvalho, espécie árvore frequente em países banhados pelo mar Mediterrâneo, mas estendendo-se a territórios um pouco mais além. Seu nome científico, em latim, é quercus coccifera***.  * Coccum = pequeno grão. — Apenas a fêmea produz o corante. / ** Em latim: cocccinus (funcionando como adjetivo). / *** Quercus = carvalho / coccum, cocci = grão / fera = portador.

Esta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-chapeuzinho-1.jpgEm árabe, vermelho se diz kirmizi, cuja etimologia remete à mesma do português carmim, por via de kermes, o nome do inseto. Em turco, o nome da personagem de literatura infantil, Chapeuzinho Vermelho, é traduzido como Kirmizi Baslikli Kiz

Em catalão, vermelho se diz vermell, em italiano vermiglio e em francês vermeil, embora as duas últimas palavras não sejam prevalentes nessas línguas. De outras maneiras, em italiano a principal é rosso, em espanhol rojo e, em francês, rouge. Em português, a palavra irmã é rubro, com a mesma origem das três anteriores aqui ditas.* No russo, e muito a propósito, é krasnyj (derivado de kermes). * Derivadas do latim rubeus.

ROJO MEXICANO

Esta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-colheita-do-pulgacc83o.jpgRecolhendo a “cochonilla” (cochonilha). / A fêmea produtora do vermelho.

No século XVII, enquanto o México esteve sob o domínio espanhol, chegou aos ouvidos do rei Carlos V a notícia de que havia por lá por uma outra espécie de parasita, altamente produtor de corante vermelho. Tão saturado e luminoso, nunca fora visto outro. O inseto ficou conhecido como cochinilla*, em espanhol. Em português, a palavra foi modificada para cochonilha. Assim, devido a grande demanda que havia pela cor, o soberano cuidou de explorar a nova e surpreendente fonte. — * Do latim coccĭnus.  

A primeira remessa, ocorreu no ano de 1523, partindo do porto de Vera Cruz. Desde então, o negócio passou a render expressivas fortunas, superadas apenas pelas provenientes da prata. O sucesso do vermelho da América foi abrangente, de modo que se espalhou pelo mundo e chegando à longínqua Veneza, também conhecida como Cidade da Cor. Ali inventaram a tinta de cochonilha para pintores, que ficou conhecida como Rosso de Venezia*. O artista veneziano Jacopo Tintoreto a utilizou e, com tanta maestria, que passaram a dizer Rosso Tiziano. — * Vermelho de Veneza ou Carmim de Veneza.

Esta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-fibras-cochonilha.jpgFios tintos com o “rojo mexicano”.

A cochonilha é parasitária do cacto Opuntia cochenillifera. A fêmea, dita como cochinilha do carmim ou grana cochinilha, tem o nome científico Dactylopius coccus. No náhuati – língua nativa do século V –, a matéria prima era dita como nocheztli, que se traduz por sangue de cacto. Agora, esporadicamente, chamam a cor de Rojo* Mexicano. — * Vermelho.

No artesanato, a tradição se mantém, tirando partido da enorme variedade de matizes e tons que o material oferece. Quanto aos matizes são três, o vermelho-carmim, o vermelho-magenta e o vermelho-alaranjado, e os tons são suas consequências. Também na arte erudita, há admiráveis obras com essa fonte de cores. Um renomado pintor barroco, Cristóbal de Villalpando, natural do México (c.*1649 / †1714), deixou magnífica obra em Rojo Mexicano. (3)

Esta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-viallapando-_-anunciaccca7acc83o.jpg“Rojo mexicano”, em “Anunciación”, 1706, por Cristóbal de Villalpando (detalhe).

Hoje em dia, o material corante tem sido largamente utilizado em alimentos e artigos de beleza. O propósito é tornar o produto mais chamativo aos olhares mas, de alguma maneira, é poderoso agente de ilusões. Mesmo sem saber, quase todo mundo está a ingerir o inseto em refrigerantes, sorvetes, charcutaria*, tortas de frutas, biscoitos, confeitos, etc**. Além dos produtos comestíveis, dá cor em batons, ruges, etc. Atualmente, a maior fonte da matéria prima está no Peru, que detém 95% do mercado. — * Charcutaria: alimentos feitos à base de carnes ou miúdos; embutidos, salsichas, etc. / ** Nas embalagens é anotado como carmim de cochonilha.

INSITAÇÕES E EXCITAÇÕES

NEsta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-barrete-_-culote.jpgo que toca à percepção, vermelho é cor agressiva. Dá para dizer, fazendo metáfora, que belisca os olhos. Assim é que, contando com sua força, vários pintores pincelaram trajes vermelhos para representar personagens proeminentes, geralmente divinos, autoritários, heróicos e endinheirados. Via de regra, a pedido dos retratados.

Com o mesmo apelo e muito simbólico é o “barrete frígio” que, num certo momento, alguns tingiram de vermelho. Dessa forma, o adotaram os jacobinos*, partícipes da Revolução Francesa, juntamente com os sans-culottes**. O adereço, semelhante ao capuz do Saci-Pererê, a princípio representava o bem, ou seja, anseios de liberdade. Entretanto, logo depois, passou a representar o mal, quando os jacobinos, movidos por qualquer motivo, passaram a perseguir e até mesmo executar, aqueles que consideravam seus opositores. A partir do século XX, o vermelho foi definitivamente associado ao esquerdismo político. — * Jacobinos: grupo elitista e mais radical. / ** Grupo popular, cujas pessoas não possuíam “culottes”, vestimenta utilizada somente pelos mais afortunados.

Atualmente, a vida nas sociedades modernas está permeada com alertas e recados em vermelho. O sinal de trânsito ordena parar; a mensagem de incêndio avisa do perigo; o rótulo da Coca-Cola desperta a sede; etcétera e tal. Não tem fim! O vermelho se faz presente também nos tapetes de Hollywood, nos vestidos das atrizes, nos sapatos do papa, nos trajes dos cardeais, no batom, cada vez mais insinuante – hoje usado por todos (!) os sexos –, e por aí afora. São demais os chamativos em vermelho! Nesse sentido, cabe lembrar da invenção de um brasileiro bem-humorado, o substantivo composto em que o adjetivo é um verbo: o vermelho-cheguei. 

VERMELHO BRASILEIRO

Em abril de 1500, com a chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral em PindoramaTerra das Palmeiras –, a palavra vermelho entrou em evidência. Logo depois que os portugueses pisaram nessa terra, que virou Brasil, o escriba da comitiva, Pero Vaz de Caminha, várias vezes escreveu vermelho, na carta endereçada ao rei d. Manoel. Numa delas, falava da cor do urucu. E, para nossa surpresa, falou também dos “barretes frígios”, que os portugueses traziam consigo.

Esta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-urucum.jpgUrucu: frutos e sementes.

Assim está em um trecho da mensagem:

“E o Capitão mandou à terra Nicolau Coelho, no batel, para ver aquele rio. […] surgiram na praia homens, ora dois, ora três, de modo que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. […]  Ali não pôde sentir deles haver fala, nem entendimento de proveito, porque o mar estava a quebrar na costa. Somente lhes deu (aos índios) um barrete vermelho* e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um chapéu preto. — * Tudo indica que seria um “barrete frígio”.

[…] traziam alguns deles ouriços verdes de árvores que, na cor, queriam parecer de castanheiras, embora mais pequenos. E aqueles eram cheios de uns grãos vermelhos* pequenos que, sendo esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha com a qual eles andavam tintos. E quanto mais com elas se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam”. — * Sementes de urucu. / [Texto: tradução interpretada].

Esta imagem possuí um atributo alt vazio; O nome do arquivo é post-rosto-urucum.jpgOs indígenas que habitavam o litoral, no século 16, falavam tupi, língua que sobrevive sob a forma denominada nheengatu, no tupi-guarani. Para dizer vermelho, usavam a palavra urukú*. Sua etimologia remete tanto à árvore do urucuzeiro**, como também às sementes do urucu, o seu fruto que, quando maduro as tornam vermelhas. Delas se extrai corante para pintar ou enfeitar os alimentos, o muito usado colorau. Isso mostra que o vermelho-urucu era a mais proeminente entre as cores de Pindorama. — * A palavra sobrevive no nheengatu, língua da mesma família do tupi-guarani. / ** Nome científico: Bixa orellana.

EMOÇÃO E POÉTICA

A cor do sangue é de causar arrepios! Mexe com os sentimentos, alguns deles, pode-se dizer, tornam-se dramáticos. Por isso mesmo, onde tem vermelho, tem emoção. Já em 1707, o médico português João Curvo Semmedo alertava sobre seus efeitos psicológicos. Disse assim:

“Ordenei que o doente não tivesse na cama cobertor vermelho; porque a cor vermelha, pela aparência e semelhança que tem com o sangue, o move e o faz sair para fora. Mas que só tivesse à vista e olhasse cobertor azul, negro ou pardo.” * SEMMEDO, Joam Curvo / “Observaçoens Medicas Doutrinaes”.

Essa cor é também muito apreciada para construir fantasias e narrativas, dirigidas tanto a adultos, quanto a pequerruchos. Na Bíblia, em Isaias 1:18, se diz qual é a cor do pecado, assim:

Venham cá, vamos refletir juntos, diz o Senhor: Embora seus pecados sejam vermelhos feito o escarlate, eles se tornarão brancos como a neve. Se forem vermelhos como o carmesim, ficarão brancos como a lã.”

Deve ser por isso que pintaram o capeta de vermelho. E o Saci-Pererê, não é mesmo um capetinha disfarçado com um gorro vermelho?

Agora, aqui vai uma poética do vermelho, em A Cochinilha. O autor nomeia o cacto como figueira que não é planta e as cochonilhas como purpúreos vermes. A criação de um anônimo francês, foi traduzida por Manuel Maria du Bocage(4), assim:

Figueira que o não é, planta não-planta,  
Folha sem árvore, árvore sem rama,
Me produz, qual assombro, em novo mundo,
Que o soberbo espanhol frequenta avaro;

Da figueira não sou nem flor, nem fruto, 
Lenho ou suco; e meus grãos, inda que belos,
São de purpúreos vermes só a estância*.
Que na folha mordaz estão ferrados.

Do sangue que lhes sevam, sai cor bela, 
Minha fama e meu bem da morte deles,
Com que a prezada púrpura me iguala.

Vale o pardilho meu sua viveza**, 
E se o meu inventor não se une aos deuses,
Ao menos a Índia minha imortalizo. — * Estância: morada. / ** Pardilho: pardacento, descolorido

• Veja também, aqui: “História do arco-da-velha”.

Pesquisa, texto e arte por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

——

(1) Apenas o ponto não tem forma e não ocupa lugar no espaço. Ele não tem configuração, ou seja, não tem tamanho, nem textura e nem cor.

(2) O corante do coccum é produzido apenas pela fêmea. / Corante e pigmento, características — Existem diferenças fundamentais entre corantes e pigmentos, cujas definições foram acordadas por várias organizações internacionais. Uma delas, a “The Ecological and Toxicological Association of Dyes and Organic Pigment Manufacturers (Basileia, Suíça)”, diz: “Corantes são substâncias orgânicas, intensamente coloridas ou fluorescentes, que conferem cor a um substrato por absorção seletiva de luz.” / Outra, a “Color Pigment Manufacturers Association, Inc. (Arlington, Virginia, USA)”, diz: “Pigmentos são sólidos orgânicos ou inorgânicos, também partículas coloridas, negras, brancas ou fluorescentes. Geralmente são insolúveis e, essencialmente, não são afetados física e quimicamente pelo veículo ou substrato ao qual são incorporados. Sua aparência se altera pela absorção seletiva e/ou pela reflexão de luz. Os pigmentos, geralmente, são dispersos em veículos ou substratos para serem aplicados, por exemplo, na fabricação de tintas, plásticos ou outros materiais polímeros.”

(3) VILLALPANDO, Cristóbal – Cidade do México, Nova Espanha, *c.1649 / †20.08.1714).

(4) BOCAGE, Manuel Maria Bardosa du – (Setúbal, Portugal, *15.09.1765 / Lisboa, Portugal, †21.12.1805). É considerado um dos mais importantes poetas e sonetistas portugueses do século XVIII.

 

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