Sumidoiro's Blog

01/09/2020

CASCAVEL & CIA.

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 9:09 am
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♦ Cuidado com a catacrese!

Encantados com um barrete* vermelho, uma carapuça de linho e um sombreiro, mais umas manilhas e um punhado de cascavéis, com facilidade os índios entregaram o Brasil aos portugueses. O preço que pagaram por Pindorama, foi uma verdadeira pechincha. Está na carta ao rei d. Manuel, anunciando a “descoberta”(1) da terra que, daí a pouco, foi renomeada como Vera Cruz. À primeira vista, tudo pode parecer inusitado, mas é pura verdade. — * O mesmo que capuz.

Leitura por Caminha, para Cabral, da carta a ser enviada a d. Manuel.

COISAS E PALAVRAS

      Em 9 de março de 1500, Pedro Álvares Cabral partiu de Lisboa para “descobrir” o Brasil. Consumado o feito, no momento do primeiro encontro com os índios, não havia palavra que lhes fosse inteligível. Porém, os estrangeiros recorreram a uma linguagem universal. Sabiam, por experiências anteriores, que ela entrava forte pelos olhos e ouvidos, com sucesso garantido. Vai daí que, de boa-fé, os índios se abalaram com as mensagens dos portugueses. Porém foram enganados, todo mundo sabe! O acontecimento foi narrado pelo escrivão da armada, Pero Vaz de Caminha, em carta ao rei d. Manuel, assim:

“E, na quinta-feira, pela manhã […] seguimos […] diretos à terra […] E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. […] E o capitão-mor mandou em terra […] a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tão logo ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens, ora dois, ora três, de maneira que, ao chegarem à boca do rio, ali já havia dezoito ou vinte […] Naquele momento, não podia haver fala, nem entendimento de proveito, pois o mar quebra na costa. Somente lhes deu um barrete vermelho* e uma carapuça de linho […] e um sombreiro preto. — * O mesmo capuz colocado no Saci-Pererê, personagem do folclore brasileiro.

Ao sábado*, pela manhã, […] ordenou ao capitão Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra […] Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que, com aquele engodo, quase nos queriam dar a mão.” 

DECIFRANDO

O cascavel de Cabral é uma pequena esfera oca de metal, com uma ranhura, tendo no seu interior uma peça metálica. Uso delas se faz atreladas aos pulsos, braços, no peito ou nas pernas. Da mesma maneira na cabeça ou pescoço dos cavalos, ou mesmo atados em algum outro animal. Quando sofre impacto, por menor que seja, balança e soa com estridência. Por isso é que um cão decorado com cascavéis é sempre notado. E um gato com cascavéis faz um tremendo estardalhaço! Ou seja, quem apela para esses penduricalhos, de alguma maneira quer chamar atenção. 

Vai daí que, com inspiração no soar das esferinhas, foi dado o nome de cascavel à cobra peçonhenta. Seu chocalhar é um alerta e avisa que merece respeito. Quanto à sua ocorrência, abrange territórios que vão do México à Argentina. No Brasil dos índios, uns lhe atribuíram o nome maraká mboya*, outros, mboy sininga**. Espelhando-se na cobra, surgiu também uma variação de significado, o de pessoa de má índole, de gênio ruim, que gosta de fazer maldades. — * Maraká = chocalho; mboya = serpente. / Mboy sininga = cobra que vibra.

Manuscrito do El Cid, com a palavra cascaueles. / Estátua de Mynaia (Álvar Fañez).

ANTIGUIDADE

No latim vulgar, a palavra é cascabellus, que significa guizo ou sineta. Porém, a etimologia aponta para origens mais antigas e em outras fontes linguísticas. Na Espanha, comprovam os fatos, o cascavel já circulava antes do ano de 1207. Num manuscrito da época, aparece o termo copiado de um texto antigo e grafado no plural, como cascaueles. Trata-se do Poema del Cid (2), versando sobre os heroísmos do El Cid, o homem que livrou Valência da dominação dos condes de Barcelona. — * Naquela época, a letra U representava tanto os sons do V quanto do U.

Numa passagem do poema, fala-se do nobre Minaya, assim:

“… diro mynaya baymos caualgar […] en buenos caballos a petrales, a cascaueles / E a cuberturas de gendales, escudos a los cuelos / E en las manos lanzas q pendones traen…”

Tradução: “… disse Minaya*, vamos cavalgar […] em bons cavalos com peitorais, (e) com cascavéis, escudos no pescoço / e nas mãos lanças que pendões trazem…” — * Mynaia representa o nobre Álvar Fáñez, herói e líder militar, no reinado de Alfonso VI.

Cobra cascavel, cascavéis de metal e chocalho da peçonhenta.

SOBRE A MANILHA

Quanto à manilha, trata-se de uma pulseira ou bracelete, que se usava atada aos pulsos, braços, pernas, etc. Não é uma simples argola, surgem com formas variadas. Algumas, devido à sua preciosidade artesanal e de material, foram usadas como moeda. Verdade é que, muito antes da “descoberta” do Brasil, as manilhas supriam navios portugueses como peças muito importantes. O navegador Duarte Pacheco Pereira, a quem atribuem a chegada ao Brasil antes de Pedro Álvares Cabral, obtinha vantagens a troco de manilhas. Isto se sabe através do Esmeraldo de situ orbis, manuscrito de sua autoria. Quando trata da sua passagem pela costa oeste da África, em 1488, particularmente da Etiópia da Guiné, diz que fez uso das manilhas, assim:

“… Foi encontrado um rio muito grande, que se chama Rio Real […] as gentes desse rio são chamadas de Jos, eles […] são nus e todos comem carne humana e, na boca desse Rio Real […] está uma grande aldeia […] nessa terra há as maiores almadias* todas feitas de um pau que se sabe há em toda Etiópia de Guiné** e, algumas delas, há de tais tamanhos que levam oitenta homens.

E estas […] trazem muitos inhames que aqui são muito bons […] e trazem muitos escravos e vacas, e cabras, e carneiros, e há um carneiro que chamam bozy. E tudo isso vendem por sal aos negros da dita aldeia. E as gentes dos nossos navios compram essas coisas por manilhas de cobre, que são muito estimadas, mais que as de latão*. E, por oito ou dez manilhas, se pode haver um bom escravo…” — * Almadia: embarcação comprida e estreita, talhada em um tronco de árvore. / ** Naquela época, era comum chamar as terras onde viviam negros de Etiópia e os negros de etíopes. / *** Latão: liga de cobre e zinco.

Mais adiante, em 1490, o rei d. João II , com o propósito de comemorar o casamento do seu filho d. Afonso com a princesa d. Isabel, promoveu uma sucessão de festas. O cronista Garcia de Rezende, em 1607, escreveu uma rememoração dos fatos:

” E houve aí u’a muito grande representação de um rei da Guiné, em que vinham três gigantes espantosos, que pareciam vivos, de mais de quarenta palmos cada um, com ricos vestido todos pintados d’ouro, que parecia coisa muito rica.

E, com eles, u’a muito grande e rica mourisca retorta, em que vinham duzentos homens tintos de negro, muito grande bailadores, todos cheios de grossas manilhas pelos braços e pernas douradas, que cuidavam que eram d’ouro, e cheios de cascavéis dourados, e muito bem concertados, coisa muito bem feita…”

Manilhas egípcias.

ENGANAÇÕES

Bem antes de Cabral, e de modo a iludir os nativos, os portugueses usaram e abusaram dos cascavéis, mas também das manilhas e dos barretes vermelhos. Para início de qualquer diálogo, as peças estavam sempre à mão, prontas para convencer mais que as palavras. Nesse sentido, uma lembrança vem de Vasco da Gama, durante sua descoberta do Caminho das Índias. Está no relato da viagem: 

Ano de 1497 — “Em 25 dias do […] mês de novembro, um sábado à tarde […] entramos em Angra de São Brás*, onde estivemos por treze dias […] Na sexta-feira seguinte, […] vieram cerca de 90 homens pardos […] eles andavam ao longo da praia, alguns trepados em outeiros**. — * Na região do Cabo da Boa Esperança. / ** Outeiro: pequena elevação.

[…] e, quando os vimos, fomos em terra […] e, […] o Capitão-Mor lhes lançara cascavéis […], e eles os tomaram, e não somente […] os que eram lançados, mas vieram tomá-los das mãos do Capitão-Mor. […] do que ficamos muito maravilhados […]

Noutro momento, no mesmo dia 25 e um pouco mais longe, houve mais um contato com os nativos. Assim consta no Diário:

“E o Capitão-Mor mandou então que os apartassem e que viessem um ou dois deles, e isto por acenos. E àqueles que vieram (vieram à bordo) o Capitão lhes deu cascavéis e barretes vermelhos, e eles nos deram manilhas de marfim que traziam nos braços, porque nessa terra, segundo nos parece, há muitos elefantes e nós achávamos o estrabo (excremento) deles bem em frente da aguada onde vinham beber.

COM EMOÇÃO

Em 1553, tocado pelo evento da Descoberta do Caminho das Índias, Camões repetiu a mesma viagem e, daí, empenhou-se em escrever os Luzíadas(3). Numa passagem, narra a mesma experiência que havia lido no diário de Vasco da Gama, assim:

Mando mostrar-lhe peças mais somenos:
Contas de cristalino transparente, 
Alguns soantes cascavéis pequenos,
Um barrete vermelho, cor contente.
Vi logo, por sinais e por acenos,
Que com isto se alegra grandemente.
Mando-o soltar com tudo, e assim caminha
Para a povoação que perto tinha.

Poderosas guerreiras ahosi, cobertas de manilhas (foto de 1908).

MEIO DE PAGAMENTO

Na segunda metade do século XV, com o estabelecimento de feitorias de Portugal no oeste da África, surgiu o comércio de escravos. As ofertas vinham de negros que repassavam seus cativos, também negros, para os portugueses. Porém, num certo momento, devido a ganância dos vendedores, houve a interveniência de d. Manuel. Nesse sentido, o rei estabeleceu o seguinte preceito:

Regimento do Trato de São Tomé – 08.02.1519 — “Nós el Rei […] fazemos saber a vós, Álvaro Frade […] que ora encarregaremos de feitor do nosso trato dos escravos da Ilha de São Tomé […] não deem por peça (escravo) mais de quarenta manilhas e daí para baixo, o menos que puder ser…”

Entretanto, daí para a frente, tanta foi a demanda pela manilha que o adereço se vulgarizou, a ponto de tornar-se obrigatório na indumentária de alguns grupos africanos, mais entre as mulheres. Denotava poder, senão delas próprias, pelo menos dos seus maridos ou de quem elas serviam. Considerando a mesma particularidade, durante o século XVII, surgiram as temidas guerreiras ahosi, no reino do Daomé (atual Benin). E como identidade, traziam seus corpos cobertos de manilhas. Treinadas para serem guardiãs do rei, lutaram bravamente durante as incursões coloniais europeias. Alguns ocidentais as tratavam como amazonas(4), visto que  denotavam tremenda valentia.

VARIAÇÕES

Avançando nos significados, ensina o padre Bluteau(5), no seu dicionário:

Manilha — bracelete ou argola que alguns povos trazem nos braços por adorno […] Huma manilha d’agua, isto é, hum anel […]“.

Neste segundo sentido, corresponde à bitola de um cano e à capacidade condução hídrica. Daí, como desdobramento, foi criado um sistema de medidas que compreende a manilha, o anel e a pena d’água que, em Portugal, prevaleceu até meados do século XIX. Como subdivisão da manilha havia o anel e a pena*. Esta última, correspondendo ao orifício de uma pena de pato**. — * 1 manilha = 16 anéis; 1 anel = 8 penas. / ** Onde não há hidrômetros, a pena d’água ainda está em uso.

Variações da manilha.

Naturalmente, à medida em que a manilha se desdobra em função e forma, ocorre a ampliação da sinonímia. Assim aparecem argola, pulseira, anel, colar, coleira, etecétera e tal. São objetos com a serventia de envolver, prender ou abraçar algo – pessoas, bichos e objetos –, que são ditos como cadeados*, trancas, algemas*, etc. Com essa vasta conotação, a manilha – em palavra e forma – permanece viva em vários apetrechos de uso corriqueiro. Alguns são mostrados na figura acima. * Cadeado: tranca que possui uma argola em forma de U. / ** Duas manilhas ligadas a uma corrente compõem um par de algemas.

ANTIGUIDADE

Mais uma vez, no dicionário do padre Bluteau, são esclarecidos alguns pontos, quais sejam:

Bracelete – Ornato que as mulheres costumam trazer ao redor da parte inferior o braço. […] em um manuscrito […] do tempo do imperador Justiniano, se acha fibula de bracile, donde se infere que bracile era bracelete e bracile é corrupção de brachiale*. […] Tito Lívio chama armila. Segundo a etimologia, armila se deriva do latim arma e arma se deriva de armus, ombro. E, devido ao galardão de levarem armas aos ombros, davam os imperadores ou generais de exercito, aos bons soldados, uma insígnia de ouro que chamam armila. […] — * Brachiale: braçadeira.

Mas, com o tempo, as insígnias de guerra se fizeram enfeites de vaidade e, com razão, se queixa Tertuliano da vaidade das mulheres, que chegaram a converter em gala feminil os prêmios de valor militar. […] A propósito desta palavra, falando em cães que trazem coleiras, isto é uma figura gramatical que se chama catacrese […]”

De fato, catacrese é um tipo de metáfora que se incorpora no uso comum da língua. Assim sendo, em sentido figurado, manilhas unidas uma às outras formam um tubo condutor, que pode servir para esgotar água, dejetos, e mais seja lá o que for. De outra maneira, o cascavel virou ofídio, barulhento, temido e mortal. 

Agora, com o perdão do bom humor, permita-me um conselho: “Nunca enfie a mão numa manilha sem cautela, lá pode haver uma cascavel adormecida. Cuidado para não despertar a catacrese!”

Pesquisa, texto e arte por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

——

(1) Suspeita-se outros, entre três navegadores, haviam chegado a algum ponto da costa de Pindorama (Brasil), antes de Cabral. As versões apontam para o português Duarte Pacheco, em 1498; e os espanhóis Vicente Pinzón, em janeiro de 1500 – companheiro de Colombo na descoberta da América – e Diego Lepe, em fevereiro de 1500.

(2) Poema del Cid ou Cantar del Mío Cid – Primeira obra da poesia épica espanhola, reunindo as façanhas de Rodrigo Díaz de Vivar, mas é também um ensaio a traduzir o espírito castelhano. Disseminado por menestréis em praças e castelos, o “Cantar”, além de exaltar valores inerentes à honra e à liberdade, oferece u’a amostra dos costumes da época.

(3) Os Lusíadas – Obra de Luís Vaz de Camões – poesia em estilo épico. Provavelmente concluída em 1556 e publicada em 1572, três anos após sua viagem ao Oriente. Tem como tema a descoberta do Caminho das Índias, por Vasco da Gama, e está mesclada com episódios da história de Portugal.

(4) Amazonas – Segundo a mitologia grega, eram mulheres guerreiras. Elas foram descritas por Heródoto, em 450 a.C. / Delas vem, lá no século XVI, a inspiração para o nome do rio Amazonas, talvez fantasiosa. Diziam que um grupo de nativos, liderados por mulheres, teriam atacado a expedição de Francisco de Orellana. Antes disso, o rio era conhecido como Marañón.

(5) BLUTEAU, Rafael – Religioso português. Autor do monumental Vocabulário Português e Latino, que mais tarde António de Morais Silva modernizou e ampliou, dando assim origem ao seu Dicionário da Língua Portuguesa.

2 Comentários »

  1. Eduardo, eu não sei o(s) critério(s) que você usa para definir os assuntos acerca dos quais irá escrever, mas posso garantir-lhe que todo texto seu aguça a curiosidade do leitor. Nunca me imaginei lendo algo sobre cascavéis e manilhas. Li, no entanto, com prazer e muito interesse o resultado de suas pesquisas. Você conseguiu elaborar um post que traz muitas informações sem se tornar cansativo. Mais uma vez, parabéns!

    Comentário por Pedro Faria Borges — 01/09/2020 @ 10:26 pm | Responder

    • Pedro:
      Meu cérebro entra em ebulição debaixo do chuveiro e durante o sono. Deve ser isso que faz minhas ideias brotarem para escrever novos Posts. Muito obrigado e um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 02/09/2020 @ 9:51 am | Responder


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