Sumidoiro's Blog

01/02/2023

NOTÍCIA DE MOMO

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 12:53 am

♦ Sempre presente 

Oriundo da mitologia grega, há um ensinamento exemplar envolvendo deuses do Olimpo(1). Nesse caso, se alinham Zeus – o que tinha o domínio do céu e dos trovões; Prometeu, responsável pela invenção da humanidade; Atena, que cuidava da sabedoria e das habilidades manuais; e Momo – de menor categoria –, cujo nome significa Deboche.

Momo flutuando no céu (Por Hippolyte Berteaux, detalhe).

Uma fábula de Esopoo grego – diz assim:

Zeus havia criado o touro, Prometeu o homem e Atena a casa. Depois, para apreciar as obras, chamaram o deus do Deboche – ou Momo –, um especialista. Porém, ao se deparar com as três criações, Momo ficou, na verdade, tomado de ciúmes e reagiu de modo impertinente.

Começou se referindo a Zeus, dizendo que errara com o touro, ao não ter colocado seus olhos nas pontas dos chifres, pois só assim poderia ver onde estaria batendo.

Quanto a Prometeu, afirmou que errara ao não colocar o coração do homem fora do peito, porque ficaria mais fácil identificar todos os canalhas e descobrir o que tinham em mente.

Finalmente, ao tratar da criação de Atena, disse que deveria ter feito a casa com rodas, para que pudesse ser deslocada facilmente, sempre que surgisse um vizinho inconveniente.

Porém, ao não aceitar as críticas descabidas, o todo poderoso Zeus* expulsou Momo do Olimpo.” — * Pai dos deuses.

Essa narrativa mostra como os gregos viam suas divindades, ou seja, como sendo seres antropomórficos*. Eram quase humanos ou daimons**. — * Que têm formas humanas. / ** Não confundir daimon com demônio.

Entretanto, havia no Olimpo uma entidade feminina infensa aos deboches de Momo, a qual fazia acelerar seu coração. Isso ocorria sempre que ele se aproximava de Afrodite, a deusa do amor, considerando-a uma figura sem qualquer defeito. Pelo menos, é o que disse o autor grego Aelius Aristides(2): Momo não tem nada a criticar em Vênus” *. Mesmo assim, à parte dela, o dito deus conseguiu descobrir algo a criticar, ou seja, suas sandálias. Apontou que rangiam sempre que ela andava! — * Em “Orationes”.

GENEALOGIA

Momo surgiu de uma segunda geração da Noite – em grego Nix (Nýx) – mas, segundo Hesíodo*, não tinha pai(3). Por sua vez, Homero – historiador grego – se refere a essa geratriz como “domadora dos deuses e dos homens”. Dela nasceram outros deuses, formando a seguinte irmandade(4): a Ruína, a Morte, a Velhice e a Discórdia. Pois sim, Momo não tinha como escapulir, pertencia a uma péssima família. — * Não confundir Momo (Momus) com Morus. / ** Segundo entendimento de Platão.

Na verdade, Nix era uma deusa de muitas serventias, tanto para o mal quanto para o bem e, de certa forma, também para a beleza. Às vezes, surgia como protetora das bruxas e das feiticeiras. Por outro lado, à parte de todas as ruindades, simbolizava a beleza da noite.

NO TEATRO DA VIDA

Dá para entender que Momo enxergava em Nix as estrelas da noite e dela assimilava a alegria e a poética. Nesse contexto é que, todo ano, antecedendo a Quaresma*, ele pisa no palco do Carnaval e torna-se o Rei da Folia. Nesse período, ao correr dos festejos, as normas de comportamento tendem a ser abolidas e todos os pecados são permitidos. Nos tempos da Roma Antiga, de maneira semelhante e em outro período, havia a Saturnália(5). O patrono era o deus Saturno** que, entre outras coisas, representava a dissolução, a renovação periódica e a libertação. — * Entre fevereiro e março. / ** Saturno (em latim): em grego, cronus.

Muito tempo depois, porém antes passando pela Espanha, chegou ao Brasil o Rei Momo, trazendo o “deboche perfumado”. Vamos explicar, chamava-se Entrudo, palavra que veio a se tornar irmã siamesa de Carnaval. No dicionário da Real Academia Española, encontra-se o “antruejo“, que significa “conjunto de los tres días de carnestolendas”. — * Antecedência da quarta-feira de cinzas, dias de abstinência da carne. Do latim carnis (carne) + tolere (abolir).

E mais um desdobramento: “antruejar“, que significa “molhar ou fazer outra burla no Carnaval*”. Resumindo, era o período em que, antigamente, Momo permitia que os foliões fizessem guerra com Limão de Cheiro. Mais que isso, jogarem baldes, vasilhas ou esguichos d’água em quem aparecesse por perto. Também, com os mesmos propósitos, se utilizava o polvilho e a farinha de trigo. — * Mojar o hacer otra burla en carnestolendas.

Durante o entrudo: deboche com farinha na cara (por Debret).

FORA DA LEI

Em 1826, a polícia proibiu a prática do entrudo dentro dos teatros(6). Depois, em 1827, foi proibido nas ruas ou qualquer lugar público(7). Contudo, parte dos foliões não dava ouvidos e contrariavam a dura lei.

Pois sim! Em 1884, acompanhando uma missão oficial francesa, o médico francês Yvan Melchior-Honoré chegou à então capital do Brasil e, de lá, foi visitar Nova Friburgo(8). Ao retornar, presenciou cenas que lhe causaram espanto, sendo que delas fez um relato:

“… Depois de atravessar a linda baía (de Guanabara), encontramos a cidade do Rio de Janeiro transformada num verdadeiro campo de batalha. Ruas, praças e casas, todas eram palco de mil cenas de violência. Atacava-se com furor e defendia-se, do mesmo modo, com cantos de vitória e gritos de desespero. Estávamos assistindo uma cidade em guerra!

Entretanto, logo ficamos tranquilos, ao perceber que não eram tiros mortais, mas apenas bolas de cera colorida, com forma de ovo e preenchidas com um líquido odorífico. Os projéteis, quando atingem o alvo, fazem com que o atacante se ponha a rir.

Se quiser saber o por quê de tudo isso, olhe no almanaque do ano da graça de 1844. Verá que o 19 de fevereiro é terça-feira gorda, dia de celebrações das mais excêntricas, das alegrias mais selvagens, dos prazeres mais barulhentos.”

Guerra com Limão de Cheiro e água fria (D’après A. Agostini, 1884).

Na verdade, às vezes humilhantes e brutais, as folias momescas a quase todos empolgava, desde os escravos, passando pelas pessoas comuns e pelas classes senhoriais e, até mesmo, envolvendo a nobreza. Verdade é que, em decorrência dos entrudos, as pancadarias e a sujeira se espalhavam pelas cidades, provocando um sem número de prejuízos. Volta e meia, os comerciantes se viam forçados a fechar as portas das suas lojas.

Os desmandos chegaram a tal ponto que, pouco a pouco, foram sendo proibidos os entrudos. Em 1904, no Rio de Janeiro, não aconteceu, mas seria ressuscitado de 1905 a 1907, entretanto, com menos empolgação e desaparecendo lentamente a partir de 1910.

Pois bem, desde que ninguém é de ferro e ao encerrar este post, somos obrigados a lançar vivas à folia. Por isso mesmo, apelamos para um poema de Manuel Bandeira:

Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco* * Deus do vinho.

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro assomo…
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus*!  * Deusa do amor e da beleza.

Se perguntarem: Que mais queres,
além de versos e mulheres?
– Vinhos!… o vinho que é o meu fraco!…
Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que não domo!…
Evoé Momo…

A Lira etérea, a grande Lira!…
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!

— Em tempo: Momos tem como assemelhados os hipócritas e os histriões(9). Eles são unha e carne, uns com os outros. Saiba mais sobre eles, clicando em Hipocrisia.

Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

——

(1) Olimpo – Na mitologia, monte considerado como morada dos deuses, também a maior elevação da Grécia.

(2) Aelius Aristides – Escritor e orador greco-romano (Hadriani, antiga Grécia, *117 d.C. / †181 d.C).

(3) Segundo Cícero, o pai de Momus era Hypnos – deus do Sono -, que se juntou a Nix.

(4) Momos (Momo), era filho de Nix (a Noite) e ela, por sua vez, surgira do Caos (ou o Vazio). / Irmãs de Momos: Moros (a Ruína); Tanatos (a Morte); Geras (a Velhice) e Eris (a Discórdia).

(5) Saturnália – Festival da Roma antiga, em honra ao deus Saturno. Ocorria no mês de dezembro, assentada no Solstício de Inverno (maior noite do ano, no hemisfério norte).

(6) Entrudo proibido nos teatros do Rio de Janeiro – Ao público: “Pela Intendencia Geral da Policia […] fica proibido o jogo do entrudo dentro do Theatro, na conformidade do Edital […] de 28 de Fevereiro do anno passado, com pena ali cominada; e outrossim se proibe gamellas e bacias com agoas, dispostas pelas ruas para se molhar violentamente as pessoas […] que muitas vezes resulta em desordem […] – Antonio Xavier da Rocha.” / Publicado no Diário do Rio de Janeiro, 04.02.1826.

(7) Entrudo proibido em lugares públicos – Ao público: “EDITAL – Fica proibido o jogo do entrudo pelas ruas e mais lugares publicos; por ser contraditorio á geral demonstração do luto que nos cobre […] E para que não se alegue ignorancia, este Edital será […] afixado nos lugares do estilo. – Francisco Alberto Teixeira de Aragão.” / Publicado no Diário do Rio de janeiro, 26.02.1827.

(8) Nova Friburgo – Cidade do estado do Rio de Janeiro, fundada por imigrantes suíços (entre 1819 e 1820), vindos do Cantão de Friburgo.

(9) Hipócrita: etimologicamente quer dizer “um intérprete escondido atrás de uma máscara”. / Histrião: na Roma antiga, era um humorista ou dançarino.

8 Comentários »

  1. Obrigada pelo post. Os deuses romanos continuam nos dirigindo.

    Comentário por ydernea de souza birchal — 03/02/2023 @ 11:22 am | Responder

    • Ydernéa: Muito obrigado. Boa sorte e bom carnaval.
      Do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 03/02/2023 @ 1:49 pm | Responder

  2. Caríssimo,
    Texto bem apropriado para o carnaval que se aproxima. Parece-me que, apesar de haver uma data certa para o carnaval, a cada ano que passa, aumentamos o período carnavalesco o que me leva a pensar que, daqui a pouco, estaremos vivendo continuamente sob o domínio de Momo, o deus do deboche. A realidade nos faz acreditar que a zombaria, o escárnio e o desregramento não estão mais restritos a um período de três ou quatro dias, mas que estendem por todo o ano. Não sei se isso é bom ou ruim. Já estou velho, mas me lembro de que, quando jovem, esperava com ansiedade os dias de carnaval. Eram dias de muita alegria, a mesma alegria que percebo nas falas e no entusiasmo de pessoas entrevistadas pela televisão, e isso é fundamental para a continuidade da vida. Viver sob o domínio de Momo, talvez, seja uma maneira sábia de entender que a vida é um verdadeiro deboche. Ocorre-me, agora, relendo o que escrevi, que não vale a pena viver sob o domínio de nenhum vício nem de nenhuma virtude. Tudo seria muito limitado para abranger a grandeza da vida. Que haja carnavais e quaresmas!

    Comentário por Pedro Faria Borges — 07/02/2023 @ 11:31 am | Responder

    • Pedro: Vou pensar na sua sugestão, do deboche como meio de vida.
      Muito obrigado, Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 07/02/2023 @ 6:27 pm | Responder

  3. Prezado Eduardo. Este “Notícia de Momo” está muito interessante. Amplia nosso conhecimento sobre as origens de Momo e brinda-nos com a poesia do genial Manoel Bandeira. Momo sempre me chamou a atenção, mas dele pouco conhecia. Sabia que tinha sido expulso do Olimpo por debochar em excesso dos outros deuses e que desceu sobre a Terra, onde criou o Carnaval. De meus tempos de criança, duas coisas me chamavam a atenção: a corpulência de Momo e o fato de vê-lo receber das mãos do prefeito as chaves da cidade. Podia assim governá-la durante três dias. Agora estou sabendo que já não querem mais um Momo pesadão. O importante é que seja do tipo bonachão, simpático e que saiba transmitir alegria a todo mundo. Já a rainha do carnaval tem que ser bonita e de grande experiência no samba. Não é isso mesmo? E então vamos lá: bom Carnaval para todos nós! Cordialmente, Estevam de Toledo.

    Comentário por stevantoledo@gmail.com — 07/02/2023 @ 11:01 pm | Responder

    • Estevam: Muito grato pelo comentário. Viva Momo!
      Um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 08/02/2023 @ 6:55 pm | Responder

  4. Uai, eu tenho certeza que fiz um comentário antes. Sumiu. Agora, não sei mais o que escrevi. Mas, sem dúvida, eu disse que gostei, pois gosto sempre! Gosto de aprender. E aqui há sempre o que aprender. Eu pouco sabia sobre Momo. E que beleza os versos de Manoel Bandeira.

    Comentário por sertaneja — 24/02/2023 @ 8:22 pm | Responder

    • Sertaneja: Não chegou o comentário que você diz. Muito obrigado, fico sempre honrado em tê-la como leitora. Um abraço do Eduardo

      Comentário por sumidoiro — 24/02/2023 @ 9:53 pm | Responder


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