Sumidoiro's Blog

01/07/2022

RISOS E SORRISOS

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 8:07 am
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♦ Para viver alegremente

O genial Leonardo da Vinci(1), mais conhecido como pintor, produziu escritos e desenhos que mostram estados de felicidade. Quer dizer que também praticava a arte do bom humor. 

Da Vinci e “A Virgem e o Menino Sorridente”, escultura de sua autoria (detalhe).

      A alegria de Leonardo sempre deixava marcas por onde passava. Assim sendo, pouco tempo depois da sua morte, o pintor Giovanni Paolo Lomazzo(2)também historiador – tomou conhecimento do que dele diziam e cuidou de anotar:

“Há uma narrativa, contada pelos seus servos [de Leonardo] que, certa vez, se animou a pintar um quadro com camponeses rindo, porém, começando com estudos sob a forma de desenhos. Nesse sentido, escolheu alguns modelos, que lhe pareceram adequados, e os convidou para um banquete.

Feito isso, no momento em que se reuniram, e com a ajuda de alguns amigos, passou a falar sobre as coisas mais estapafúrdias do mundo, sem qualquer nexo. Como resultado, eles passaram a fazer gestos e a usarem expressões extremamente ridículos. Enquanto isso, Leonardo ia armazenando em sua mente tudo aquilo que assistia. Finalmente, depois que os homens se retiraram, o pintor tratou de transportar para o papel as figuras exóticas que riam aos borbotões.”

Essa revelação traz à lembrança um bem conhecido desenho de sua autoria (ao lado), mostrando um homem rindo e, de modo tão expressivo, que parece estar vivo. Embora não se possa afirmar, é possível que essa figura tenha a ver com o que contou Lomazzo. De qualquer maneira, dá para imaginar como teria sido o clima da festa hilária.

← Por Da Vinci


      O italiano Giorgio Vasari(3), pintor, arquiteto e biógrafo, escreveu sobre Da Vinci, dizendo:

“Leonardo sempre se empolgava quando via uma cabeça humana que chamava sua atenção, fosse por uma barba, um cabelo inusitado ou qualquer outra coisa. Nesses casos, costumava seguir a pessoa, nem que fosse por um dia inteiro. Ademais, tinha a capacidade de guardar as figuras na memória. Quando chegava em casa, sabia desenhá-las como se estivessem presentes. Há muitas para se ver, tanto de homens, quanto de mulheres. Uma delas é a cabeça de Americo Vespucci*, representado como um homem idoso, desenhada a giz sanguíneo. Outra é a de Scaramuccia, líder dos ciganos.” — * O navegador (Florença, *09.03.1451 / Sevilha, †22.02.1512).

Feições raivosas, nada de sorrisos, por Da Vinci.


O humor debochado também compunha o temperamento de Leonardo, como se depreende em várias das suas anedotas(4):

1 . ANEDOTA: Sobre certa senhora

Um homem doente, prestes a morrer, e ao ouvir uma batida na porta, perguntou ao seu criado sobre quem estaria chamando. O criado foi até lá e logo voltou, informando que era uma mulher, se dizendo como Madonna Bona (Senhora Boa). Então, o doente ergueu os braços ao céu, louvando a Deus e, em voz alta, ordenou ao servo que a fizesse entrar rapidamente. Precisava ver uma boa mulher antes de morrer, pois, em toda a sua vida, nunca vira uma.

Essa caçoada é de interpretação ambivalente. Poderia se referir às mulheres em geral ou, particularmente, à duquesa Bona di Savoia(5), também conhecida como Madonna Bona. Essa mulher fora a segunda esposa de Galeazzo Maria Sforza(6), quinto duque e governador de Milão, entre 1481 e 1499. Personagem de triste memória, também conhecido como “O Dissoluto” e que fora assassinado, em 1476. — Da Vinci prestou serviços a Ludovico Sforza (tio de Galeazzo).

“Monalisa” e “A Virgem e o Menino Sorridente” (detalhes).

      Em outra oportunidade, Vasari chamou a atenção sobre o pintor, dizendo que gostava de impulsionar seus pincéis, tendo como estímulo sorrisos e gargalhadas. E relata o que ocorrera em certa ocasião:

Ele […] trabalhava no retrato de Mona Lisa(7), esposa de Francesco Giocondo* […] Enquanto ela posava, mantinha músicos que tocavam para ambos, cantavam e brincavam, de modo a dissipar aquela melancolia que, amiúde, os pintores costumam colocar nos seus retratos. * O título “Gioconda”, às vezes dado à obra, provém do sobrenome do marido.

Detalhes de estudo para “Santana e a Virgem”, ambas sorrindo. / Rosto da virgem.

      Na mesma linha da Mona Lisa, Leonardo pintou inúmeros sorrisos. Dois deles, quando Luíz XII, após o nascimento de sua filha Claude, lhe fez encomenda de uma representação de Santa Ana e sua filha, a Virgem Maria. A pintura seria instalada na igreja da Santisssima Annunziata, em Florença.

Em várias ocasiões, o tema da virgem envolveu o pintor. Numa conhecida pintura, há sorrisos que encantam o observador, o de Nossa Senhora, com o menino Jesus ao seu colo e o da sua mãe Santana, ainda muito jovem, ao seu lado. Junto, aparece também o menino São João Batista, primo do Salvador. Contudo, a obra não chegou a ser terminada(8).

2. ANEDOTA: Da arrogância senil

“Um velho mal-educado, estava desprezando um jovem em público e mostrando, em palavras ousadas, que não o temia. Diante da situação e com mais sabedoria, o jovem respondeu que sua idade avançada lhe servia melhor como escudo, mais do que sua língua ou sua força.”

3. ANEDOTA: De religiosos

Das anotações do próprio Leonardo:

É costume, entre frades franciscanos, quando estão em seus conventos, fazerem jejuns de carne. Porém, nos momentos em que estão mendigando e, claro, vivendo da caridade alheia, têm licença para comer o que lhes for oferecido.

Ora bolas! Em viagem, dois desses frades pararam numa estalagem, onde encontraram um mercador. Buscando o que comer, sentou-se o trio à singela mesa da pobre estalagem e lhes serviram, para dividir por três, um pequeno assado de frango. O mercador, ao sentir que para si isso era pouco, voltou-se para os frades e comentou:

“- Se não me falha a memória, nessa época, vocês não comem carne em seus conventos. Assim, ao ouvirem essas palavras, os frades se lembraram das regras que vinham do convento e admitiram, sem objeções, que essa era a pura verdade. Então, o mercador teve seu desejo atendido e comeu por inteiro o pedaço de frango, sendo que os frades nada mais fizeram do que cumprir com sua obrigação.”

Depois do jantar, partiram os três juntos e, tão logo percorreram uma certa distância, chegaram a um rio de consideráveis largura e profundidade. Os três estavam a pé, sem montaria, os frades por causa da pobreza, o mercador por pura avareza. 

Porém, pelo costume da caridade, tornava-se necessário que um dos frades, mesmo estando descalço, de algum modo auxiliasse o mercador na travessia. Então, um deles pegou o homem e o colocou nos ombros. Porém, ao chegarem no meio do rio, o frade lembrou-se de outra regra de sua ordem e, parando de repente, como se fosse o próprio São Cristóvão*, ergueu os olhos para o fardo humano e indagou:

“- Diga-me, você trás algum dinheiro consigo?”

Respondeu o outro:

“- Você sabe que sim! Acha que um mercador como eu deveria viajar desprevenido?”

Então, sem pestanejar, exclamou o frade:

“- Cometi uma falha! Nossas regras proíbem que carregar dinheiro”, – e logo jogou o mercador na água.

Finalmente, o mercador, que nada tinha de bobo, percebeu a reação jocosa devido à indignidade que havia provocado. Assim sendo, com um sorriso amarelo e corado de vergonha, pacificamente suportou a vingança. * O nome Cristóvão significa portador de Cristo.

Selo em homenagem a Fra Luca Pacioli. / Homem em Divina Proporção, por Da Vinci.

FALANDO SÉRIO

E por falar em frade, mas mudando de assunto, Leonardo, ao tornar-se amigo de um franciscano, ambos trataram de coisas muito sérias. Sim, ao se conhecerem em Milão, juntos fizeram uma revolução no campo da estética e dos números. O religioso chamava-se Fra Luca Pacioli(9), celebrado matemático italiano. Foi esse homem que lhe repassou a ideia da Divina Proporção, aquela regra que parece reger as belezas do universo. Como se sabe, de acordo com o ensinamento dele recebido, Leonardo desenhou e explicou o modelo de perfeição que ficou conhecido como Homem Vitruviano(10).

Por outro lado, em se falando de dinheiro, aparece outra vez Pacioli, como criador da “receita” da contabilidade de partidas dobradas – usada até hoje –, também conhecida como Método Veneziano. Devido a mais essa genialidade, é considerado o “pai das artes contábeis”. Ou seja, Leonardo sabia onde e com quem buscar a sabedoria.

TRAÇOS DO PERFIL

Paralelamente ao bom humor, eram notáveis em Da Vinci a bela aparência, a fortaleza física, a perspicácia, a humildade, a simpatia e a generosidade, mantidas durante toda vida. Com tudo isso, pôde ganhar o bem-querer daqueles que o conheceram. Seu biógrafo Vasari escreveu:

Na aparência era notável e belo. Sua magnifica presença confortava as almas mais conturbadas. De tão persuasivo que era, conseguia vergar qualquer pessoa à sua própria vontade. De tão forte fisicamente que era, conseguia enfrentar a violência e, com a sua mão direita, conseguia entortar ferraduras e batentes de ferro como se fossem de chumbo. De tão generoso que era, alimentava todos os seus amigos, fossem ricos ou pobres… Só por ter nascido, deu a Florença* uma excelente prenda e sua morte castigou-a com incalculável perda. — * Vassari era florentino.


É isso aí: Da Vinci tinha consciência da importância do seu nome e da sua obra. É voz corrente que, para seu funeral, encomendara 20 quilos de velas, a serem acessas em quatro igrejas. Com a mesma pompa, seu caixão deveria ser conduzido por sessenta mendigos, carregando igual número de tochas. Fica uma pergunta, foi seu final uma bela festa ou uma encenação teatral, ou ambas as coisas? Artista até na morte!

Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

——

(1) DA VINCI, Leonardo – (Vinci, República de Florença, *15.04.1452 / Amboise, França, †02.05.1519 — 67 anos de idade). Desenhista, pintor, escultor, engenheiro, cientista, teórico, arquiteto, etc. Foi um dos principais representantes dos ideais humanistas. A imensa variedade de suas obras contribuiu na formação das gerações posteriores. — Sua formação artística começou no ateliê do pintor Andrea Verrocchio. / Imagem à esquerda: túmulo de Da Vinci no Chateau d’Amboise, vale do Loire.

(2) LOMAZZO, Giovanni Paolo – (Milão, Itália, *26.04.1538 / Milão, †13.02.1600) Pintor milanês. Aos 33 anos de idade, ficou praticamente cego e se devotou à escrita. Nessa condição, publicou dois tratados de arte: “Trattato dell’arte de la pittura, scoltura, et architettura”, em 1584, e “Idea del tempio della pittura”, em 1590).

(3) VASARI, Giorgio – (Arezo, Itália, *30.07.1551 / Florença, †27.06.1574) Pintor, arquiteto, engenheiro, escritor e historiador. Dito como “primeiro historiador da arte”, criou o gênero das enciclopédias biográficas artísticas. Suas obras levaram o título de “Le Vite de’ più eccellenti pittori, scultori, ed architettori” (Vidas dos Mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos), com primeira publicação em 1550 e dedicada ao grão-duque Cosimo I de’ Medici.

(4) Fonte: ESCRITOS LITERÁRIOS DE LEONARDO DA VINCI (Scritti Letterari di LEONARDO DA VINCI, cavati dagli autografi e pubblicaty da J. P. Richter), 2ª parte, Londres, 1883. — Versão bilingue, em italiano e inglês.

(5) MADONNA BONA – cognome de Bona di Savoia, duquesa de Milão (Chateau d’Aveillane, França, *1449 / †1503). Filha de Luís I, princesa da Casa de Savoia, França.

(6) SFORZA, Galeazzo Maria – (Fermo, Itália, *24.01.1444 / Milão, Itália, †26.12.1476). Assassinado nas proximidades da igreja de Santo Estefano (St. Estêvão), por um conspirador da nobreza.

(7) Mona Lisa (Mona, diminutivo de Madona). Na verdade, construiu-se uma lenda sobre essa pintura, de modo que tem servido para que a personagem e o quadro adquiram enorme fama. Diz-se que quem encomendou o quadro a Leonardo da Vinci foi um nobre instalado em Florença. Duas vezes viúvo, Francesco del Giocondo casou-se, em 1495, com uma jovem mulher de nome Lisa. No entanto, outra teoria diz que a representada seria a favorita de Giuliano di Medici, líder da República Florentina. Até agora, o mistério está sem solução. Ademais, a Mona Lisa ganhou popularidade, entre o grande público, depois que publicizaram seu roubo, em 1911. 

(8) IMAGEM na lateral: Pintura de “Santana e a Virgem”, executada entre 1503 e 1519. Ficou inacabada e está colecionada no Museu do Louvre, em Paris. Mostra a Virgem Maria sentada no colo da mãe, Santa Ana, quando segura o Menino Jesus, que brinca com um carneiro. Foi eliminada a figura de São João Batista, que aparece nos estudos. O carneiro representa o sacrifício de Jesus e Santa Ana ou, talvez, a Igreja.

(9) PACIOLI, Luca Bartolomeo – (*c.1447 / †19.06.1517) Também considerado como pai da contabilidade moderna, devido ao seu método das “partidas dobradas”. Em 1497, ao aceitar convite do duque Ludovico Sforza, foi trabalhar em Milão, onde se relacionou com Leonardo da Vinci. / Em 1499, os franceses invadiram Milão, sendo que Da Vinci e Pacioli foram se refugiar em Florença, onde continuaram o relacionamento.

(10) VITRÚVIO – (*c.80-70 a.C. / †c.15 a.C.) Arquiteto e engenheiro romano. Autor da extensa obra “De architectura”. — No Livro III, Capitulo I, Parágrafo 3, Marcus Vitruvius Pollio (Vitrúvio) escreve sobre as proporções ideais do homem: “Cada parte de um homem, tal como acontece em um templo, deve possuir correspondências entre si e o todo. O umbigo está colocado no centro do corpo. Quando o homem está deitado, com o rosto para cima e tendo as mãos e os pés estendidos, considerando o umbigo como um centro e, daí desenhando um círculo, nele tocarão os dedos das mãos e dos pés. Não apenas pelo círculo o corpo estará circunscrito, mas também caberá dentro de um quadrado… (etc.).(imagem ao lado)

8 Comentários »

  1. Bom dia, Eduardo. Como sempre, são deliciosas suas histórias aqui no Sumidoiro. Abraço. Manoel Guimarães.

    Comentário por Manoel Marcos Guimarães — 01/07/2022 @ 9:29 am | Responder

    • Manoel: Há quanto tempo não tenho notícias suas! Isso não pode ficar assim. Conte-me como tem levado a vida. Muito obrigado e um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 01/07/2022 @ 10:13 am | Responder

  2. Prezado Eduardo,
    Já conversamos tanto sobre Leonardo da Vinci que de algumas das anedotas narradas eu já tinha conhecimento, mas o mais importante é perceber que um gênio da estirpe de Leonardo da Vinci era bem humorado e muito alegre, o que nos ensina bastante acerca da vida. Parece-me que o humor é filho da humildade e pai da leveza. Só a humildade nos permite dizer “bom, gente, eu tentei fazer o melhor, mas saiu esta merda. Vou me preparar mais; da próxima vez, acho que dá para fazer melhor”. A humildade é que nos dá condições de rir de nossos erros. Quando somos capazes de rir, de relativizar nossos sentimentos, tornamos as situações mais leves. Seu texto, Eduardo, é um convite para uma pausa nesta onda de mau humor, de intolerância, de ódio, de falta de educação que estamos vivendo, o que nos permitirá uma vida de melhor qualidade. Embora sem querer alongar-me, penso que vale lembrar aqui o que escreveu André Comte-Sponville: “Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é estar demasiado enganado acerca de si, é ser demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase sempre carecer, com isso, de generosidade, de doçura, de misericórdia…” Um grande abraço!

    Comentário por Pedro Faria Borges — 02/07/2022 @ 11:01 am | Responder

    • Pedro: Como sempre, seu comentário é um acréscimo ao que escrevi. Seria importante que todos lessem.
      Muito obrigado, Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 02/07/2022 @ 11:42 am | Responder

  3. Eduardo, obrigada por me ter aberto mais uma janela, entre as tantas que já abriu. Do genial Leonardo, conhecia, como a maioria das pessoas, algumas obras de arte e, por felicidade, fui levada a conhecer seus inventos, em uma exposição em São Paulo, há alguns anos. Vi que ele já propunha a necessidade de aparelhos que hoje estão presentes em nossa vida: helicóptero, para -quedas, metralhadora, escada-rolante, para não citar mais. Agora, também por felicidade, fico sabendo que ele cultivava a alegria. Mais uma vez, muito obrigada. Ydernéa

    Comentário por Ydernéa — 02/07/2022 @ 12:01 pm | Responder

    • Ydernéa: Eu também sempre senti fome de alegria e não passo sem ela. Por isso, agradeço a Deus por todas as felicidades que me dá.
      Muito obrigado, Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 02/07/2022 @ 1:51 pm | Responder

  4. Mesmo inacabada a pintura “Santana e a Virgem” é deslumbrante. Grande Da Vinci. Genial em tudo por tudo. E seu texto nos mostra facetas dele que eu desconhecia. Obrigada.

    Comentário por sertaneja — 16/07/2022 @ 2:26 pm | Responder

    • Sertaneja: Quero escrever mais sobre o Da Vinci. Esse personagem me encanta.
      Muito obrigado, Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 16/07/2022 @ 6:09 pm | Responder


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