Sumidoiro's Blog

20/03/2022

MEU ECLIPSE

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 10:03 am
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♦ Vi e ouvi 

Este que aqui escreve, contava 9 anos e 10 meses de idade, no dia 19 de maio de 1947. Então, cursava o 3º ano primário – turno da manhã –, no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte. Naquele dia, d. Vera(1), a professora, deu um recado para a classe: “- Amanhã, dia 20, tragam todos um pedaço de vidro enfumaçado. Vamos ver a lua encobrir o sol.” No primeiro momento, não entendi bem o recado. E, como não podia ser diferente, fiquei ansioso esperando chegar a hora do espetáculo. Até que, na data aprazada e pontualmente, começou a anunciada sessão no teatro da natureza. Tanta foi minha emoção, que ainda guardo esse acontecimento vivo na memória.

Eu e meu grupo escolar, na av. Getúlio Vargas. De lá, assisti o espetáculo.    

      O ponto ideal para a observação estava na cidade de Bocaiuva – norte do estado de Minas Gerais –, ligeiramente melhor do que em minha cidade. A escolhida fica entre Montes Claros e Curvelo. E foi para lá que se dirigiram os interessados, cientistas, militares, jornalistas e curiosos do mundo inteiro.

Tal como previsto, às 9 horas, 34 minutos e 8 segundos, teve início a cobertura do sol em Bocaiuva, completando-se em 3 minutos e 48 segundos*. Praticamente, da mesma maneira, o fenômeno se repetiu em Belo Horizonte, devido às semelhanças geográficas e climáticas. — * Informação do jornal Folha da Noite (SP).

Também a política, desde sempre atrelada a quase tudo, cumpriu seu papel, naquele dia astronômico. Isto é, quando mal terminara a II Guerra Mundial* e ainda permaneciam as disputas entre Estados Unidos e União Soviética. Ou seja, no mesmo contexto, a Guerra Fria começava a ganhar corpo. No Brasil, o general Eurico Gaspar Dutra exercia a presidência da república. Por outro lado, os eventos políticos, econômicos e sociais, estavam a influenciar tudo o que viria acontecer, até o final da década de 1940. — * Em 02.09.1945.

O eclipse em quatro tempos.

Da parte dos norte-americanos, um dos objetivos das investigações foi mantido sob sigilo, só vindo à tona anos depois. Isto é, tinham a intenção de calcular o tamanho exato do planeta terra e, ao mesmo tempo, a distância entre os continentes. Contudo, esses dados serviriam também para o desenvolvimento de mísseis teleguiados, com objetivos militares.

Com intenções semelhantes, também vieram os russos a observar o eclipse, mas tiveram menos sorte. Ao terem optado por observar o eclipse em Araxá, no dia aprazado, as condições climáticas se mostraram desfavoráveis. O famoso repórter David Nasser, da revista O Cruzeiro, de lá, produziu uma reportagem, terminando com palavras desalentadoras: “O sol permaneceu, entretanto, atrás das nuvens. E o eclipse russo fracassou. Esperemos pelo ano 2001.”* Em 31.05.1947.

Outra coisa muito importante se investigava, aquela que comprovaria o que dissera Albert Einstein*, sobre o comportamento da luz submetida a fortes campos gravitacionais. Ou seja, deveria ocorrer um desvio para o vermelho, mostrando que a luz é afetada pelos campos magnéticos. Note-se que, desde a descoberta de Isaac Newton**, se sabe que a energia contida na luz branca se desdobra em várias cores, também energia, que vão do vermelho ao azul-violeta. Isto pode ser constatado ao se observar os arco-íris, quando ocorre a decomposição da luz branca.* Experimento no eclipse solar de 1919, em Sobral, Ceará (BR). / ** Primeiro experimento em 1664.

Isaac Newton decompondo um “fio” de luz branca com um prisma de cristal.

ECLIPSE COM BOM HUMOR

Em Bocaiuva, o repórter celestino Silveira – da Revista da Semana (RJ) – presenciou fatos divertidos. Então, relatou alguns deles, como este:

Ao que parece, os americanos passaram por muitas dificuldades. A primeira, não sabiam pronunciar a palavra Bo-ca-iuva com perfeição. Daí, tiveram que deturpá-la, dizendo Buki-Uki, que faz lembrar “boogi-woogie”*. Havia também uma placa, logo em frente ao local de desembarque dos aviões, onde se lia “BUKI-UKI CITY.”* Ritmo derivado do blues.

Celestino conta outra:

Quando íamos dar início a uma transmissão radiofônica, alguns caipiras se postaram por perto, olhando tudo com curiosidade. Ao perceber seus olhares de perplexidade, resolvi entrevistar um deles e que falasse ao microfone. E, então, comecei: “- Eh, amigo, você pode falar alguma coisa nesse aparelho?” E mostrei o microfone. O caipira abriu a boca, com seus dentes cariados, e perguntou:

“- Falá pra quê moço?”

“Falar para todo o Brasil. O que você disser sobre o eclipse será ouvido no Rio, em São Paulo, em toda parte…” O caipira, então, botou o cigarro de palha na orelha, coçou a barbicha e se manifestou:

“- Ê, ê! Então é bão, sim sinhô. Vou opiná e ficá importante. Chiiii… Sei não. Num sô instruído, mas parece que é uma bestera qualquer lá em cima, do sol com a lua.”

20.05.1947. / “Nada de anormal na Colônia Gustavo Riedel.”

Mais uma! Após o eclipse, um repórter se dirigiu ao Hospício Gustavo Riedel (RJ), a garimpar notícias entre os lunáticos. E saiu com esta nota, publicada no jornal:

A propósito da possibilidade admitida por ilustres cientistas, de atuar o eclipse sobre o organismo humano e, principalmente, com referência aos doentes nervosos e sujeitos a desequilíbrios mais acentuados, ouvimos o professor Hernani Lopes, um dos nossos psiquiatras e chefe de serviço na Colônia Gustavo Riedel.

Prontamente, atendeu nosso pedido dando-nos todas as informações: – Justamente com esse objetivo, cheguei muito cedo ao meu gabinete, a fim de observar qualquer anormalidade que, porventura, pudesse surgir entre os meus doentes. Estive a postos, ouvindo as irradiações de Bocaiuva e vigiando, ao mesmo tempo, todo o ambiente do hospital. Devo, entretanto, declarar que nada de maior observei, correndo tudo como sempre. Os doentes, assim como estavam, assim permaneceram. — * “A Noite”, 20.05.1947, página 2.

Passado algum tempo, após o “sucesso” do eclipse, começaram a circular histórias por toda parte, ou melhor, fantasias a respeito dos acontecimentos.

Uma delas, dizia que a escolha feita pelos norte-americanos teria ocorrido por influência de José Maria de Alkmin(2). Melhor dizendo, fruto de uma das inúmeras artimanhas desse político, com o intuito de glorificar Bocaiuva, seu torrão natal. Daí a pouco, alguns conterrâneos passaram a chamá-lo de “dono do eclipse”.

Outra, vem de uma narrativa atribuída a meu amigo e repórter, Marcelo Coimbra Tavares(3) que, quando trabalhava para os Diários Associados, fizera a cobertura dos acontecimentos. Porém, antes de tudo, preciso dizer que Marcelo era também um ficcionista de mão cheia. Nesse segundo sentido, quando alguém abordava o assunto do eclipse, costumava dizer que a expedição científica dos norte-americanos teria sido de inigualável magnitude. A tal ponto, que lá havia até um mestre de cozinha, “nascido em Jacarepaguá (RJ) que, na empolgação do momento, trocou seu nome Zé Maria da Cruz por Joseph Mary Cross.”

De fato, meu afoito amigo Marcelo(4), mais conhecido como Marcelão, não deu trégua. Costumava dizer que, devido ao seu empenho investigativo, tomara conhecimento de segredos dos norte-americanos sobre os átomos. Assim, fazendo um prognóstico, teve a ousadia de dizer: “- Prestem bem atenção. Quem sabe, com o correr dos anos, você terá como fabricar sua bomba de hidrogênio para atirar no cachorro do vizinho?”

Volto ao dia em que a lua apagou “meu sol”, lá no grupo escolar. Lembro-me muito bem, vi e ouvi… Quando escureceu, galinhas cacarejaram numa casa ao lado, na rua Rio Grande do Norte. Dirigiam-se aos poleiros para dormir. Daí a pouco, ao voltar a claridade, um galo soltou o canto da alvorada e as galinhas completaram a festa no galinheiro. Cocoricó, cocoricó!


DEPOIS DO ECLIPSE

      Mais adiante, chegou o ano de 1955. Eu, Eduardo, naquele momento, comecei a trabalhar na imprensa, exercendo a profissão de ilustrador e diagramador. Vai daí que, dando curso às minhas atividades, conheci Wilson Frade(4)cronista social – e, depois, Marcelo Tavares, muito próximos um do outro. Com o primeiro, trabalhei na revista Alterosa e no Correio de Minas. Com o segundo, no Correio de Minas. Certa feita, Marcelo me revelou a origem da identidade Rohan, sugerida por ele e adotada por Wilson Frade, para pseudônimo na sua coluna social, do jornal Folha de Minas e, depois, para nomear uma casa noturna, a Boate Chez Rohan, inaugurada em 1958.

Na edição da revista Alterosa, de 15.03.1958, Wilson lançou notícias do “grand monde” belo-horizontino e de alhures, numa delas dizendo:

A boate Chez Rohan (ex-Arco do Triunfo)(5) foi inaugurada com um elegante coquetel, que mobilizou […] o melhor dos nossos círculos sociais. […]

Na mesma Alterosa, em data anterior, ou seja, 15.04.1956, Wilson havia dito em tom solene:

Animadíssimas as noitadas no Arco do Triunfo. Até seis da manhã, todos os dias, com a boemia elegante circulando.

Marcelo Coimbra Tavares e Wilson Frade. / Revista do Rádio, 12.04.1958. 

A inspiração para o nome Rohan, me contou Marcelo, veio do Cardeal Rohan, um ilustre prelado francês, influente, impetuoso, porém devasso. Se, de antemão, Wilson soubesse sobre ele, não teria adotado tão inconveniente identidade.

← Cardeal Rohan.

Pois sim, os malfeitos desse cardeal, envolveram a monarquia francesa em sórdidos acontecimentos. O que teve maior repercussão, ocorrido por volta de 1785, envolveu um diamante roubado, que Rohan pretendera oferecer à rainha Maria Antonieta, parece que com inconfessáveis intenções. Porém, quando a tramoia foi descoberta, o cardeal foi processado e, como sói acontecer, absolvido, desde que era muito poderoso. Recebeu apenas a penalidade de degredo.

Contudo, a rainha já andava bastante desmoralizada e, para ela e para o rei, tudo seguiu piorando, com inúmeras dificuldades, uma em cima da outra. Até que, em 1793, em meio à Revolução Francesa, Maria Antonieta foi guilhotinada, assim como seu marido Luís XVI.

      Ainda merecem destaque dois irmãos de Marcelo, também comunicadores. Um deles, Sérvulo Coimbra Tavares(6), que trabalhou em vários jornais mineiros e nacionais. Fez crônica social no jornal Folha de Minas e foi grande amigo de Juscelino Kubitschek.

Em outras oportunidades, foi assessor de dona Sara – a primeira dama –, e adido comercial da Embaixada do Brasil, em Madri, etc. A perspicácia e o bom humor eram comuns entre os irmãos. Prova disso, por parte de Sérvulo, são suas crônicas para a imprensa. Numa delas(7), de cunho político, deixou uma lembrança que se reflete nos dias atuais. Pois assim disse:

Há um vezo*, arraigado neste País, de que o preceito de Maquiavel, “divide et impera”**, é máxima a ser cumprida para galgar posições, destronar pretensos adversários ou se firmar em postos governamentais. Nem bem os tucanos assumiram o “galho” da República, as disputas pelo poder inflamaram bicos e penas coloridas. — * Hábito. / **Dividir para reinar.

← Rômulo Paes, em 1946.

O outro irmão se chamava Rômulo Paes(8) que, aos 17 anos de idade, iniciara sua carreira como cantor de rádio. Mais tarde, veio a ser diretor artístico da rádio Guarani e, depois, diretor da Rádio Mineira. Também trabalhou na televisão. Contudo, mais se destacou como compositor musical. Certo dia, na sua rotina de boêmio inveterado e frequentador das madrugadas belo-horizontinas, teve a feliz ideia de rotular um prato do Café Palhares que ficou famoso. À refeição emblemática, ele deu o nome de Kaol (cachaça, arroz, ovo e linguiça).

Finalmente, eu Eduardo, quero dizer que convivi com Rômulo e me lembro de um fato curioso. Ocorreu quando, a seu convite, participei de uma entrevista, na tv Itacolomi, em estilo de “mesa redonda”. Nela estiveram reunidos vários artistas plásticos.

Pois bem, na apresentação televisiva, Rômulo fazia propaganda de um uísque nacional. Assim sendo, para compor a cena, mandou servir a todos uma porção de água em copos de uísque, mas fingindo que era o produto que estava a divulgar. Vai daí que, em certo momento, entretido que estava com o palavrório, sorvi a água de um só golo. Pois sim! Imediatamente notei o olhar de reprimenda que me lançou Rômulo, tentando me eclipsar.

Graças a Deus, daquela vez escapei e ainda estou vivo. Agora, sem dúvida, com menos brilho, devido à minha idade.

      Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

——

(1) BRANDÃO, Vera Ribeiro – professora. / Diretora do Gr. Esc. Barão do Rio Branco: Ondina do Amaral Brandão. // Até então, ESTE AUTOR se identificava pelo nome de batismo e registro como Eduardo de Paula Netto. Mais tarde, a identidade foi alterada para Eduardo Vianna de Paula Filho.

(2) ALKMIN, José Maria de – (Bocaiúva, *11.06. 1901 / Belo Horizonte, †22.04.1974) Político do PSD e da Arena. Sua maior investidura foi como 15º vice-presidente do Brasil, no governo do general Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente do regime militar do Brasil (1964–1985).

(3) PAES, Marcelo Coimbra Tavares – Advogado e jornalista. Filho do professor Waldemar Tavares Paes e de Felicidade Hercília de Oliveira Coimbra.

 (4) FRADE, Wilson – (Belo Horizonte, *02.07.1920 / Belo Horizonte, †16.11.2000) Iniciou a carreira de jornalista na Folha de Minas, como repórter de política. Depois, no mesmo jornal, e a convite de Moacyr Andrade, assumiu o colunismo social, para substituir Sérvulo Coimbra Tavares. Como jornalista, o maior tempo de sua atividade foi dedicada aos jornais Diário da Tarde e Estado de Minas, do grupo Diários Associados.

(5) Boate “Arco do Triunfo”: rua Tamoios, entre rua Espírito Santo e rua da Bahia (se não me falha a memória). / Boate “Chez Rohan”: avenida Álvares Cabral, entre rua Espírito Santo e rua da Bahia.

(6) PAES, Sérvulo Jayme Coimbra Tavares – (Ouro Fino, MG, *10.03.1927 / Brasília, DF, †09.04.2000). 

(7) Crônica: “Rasputin, boquirrotos e excelências”, por Sérvulo Coimbra Tavares. Revista FOCO, maio de 1995.

(8) PAES, Rômulo Coimbra Tavares – (Paraguaçu, MG, *27.07.1918 / Belo Horizonte, †04.10.1982).

6 Comentários »

  1. Rapaz, que boa lembrança essa do ecliipse em Bocaiuva. Cresci ouvindo histórias sobre isso. Afinal foi aqui pertinho. Pena que não consigo me lembrar de nada… Que coisa! Só me recordo do meu pai contando as piadas, muitas inventadas, com toda certeza. E todo mundo rindo… Eu não penso que eram as mesmas que você narrou para nós. Soaram aos meus ouvidos como novidade. Tenho a impressão que meu pai escreveu algo sobre isso, num caderno que deveria virar livro, mas não se tornou realidade. Eu tenho o caderno… Vou até investigar.
    Lembro-me do KAOL! A expressão chegou para nós. Não sabia o nome de quem tinha criado a palavra. Pois é, eu sempre aprendendo quando leio seus textos.

    Comentário por sertaneja — 20/03/2022 @ 3:28 pm | Responder

    • Sertaneja: Aí na sua Montes Claros, se não havia nuvens, o eclipse foi visto tal como eu vi. Fico aguardando sua investigação.
      Muito obrigado, Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 20/03/2022 @ 4:58 pm | Responder

  2. Muito obrigada. Seu blog me trouxe boas lembranças. Assisti o eclipse quando já estudava no Colégio Izabela Hendrix, usando vidro enfumaçado, como você. Lembrei-me também do querido Grupo Escolar Barão do Rio Branco, onde fiz meu curso primário e de pessoas por você citadas, cujos nomes me são caros. Um abraço, Ydernéa.

    Comentário por ydernea de souza birchal — 21/03/2022 @ 10:20 pm | Responder

  3. Ydernéa: Pois é, como é bom viajar no passado. Deslocamos no tempo com todo conforto, sem necessidade de comprar passagem e com direito a idas e vindas, quando bem quisermos. Bom demais!
    Muito obrigado, Eduardo.

    Comentário por sumidoiro — 21/03/2022 @ 10:38 pm | Responder

  4. Eduardo,
    Em seu texto, eu só mudaria uma palavra na última frase e diria “Agora, sem dúvida, com mais brilho, devido à minha idade.” Conversar com você, estar com você, ler seus escritos, tudo isso é uma fonte de prazer e de sabedoria. Você consegue, com maestria, levar até seus leitores a profundidade de suas observações, a leveza de suas lembranças, a alegria de seus encontros e a certeza de que ter amigos é das coisas mais importantes da vida. Eu nasci alguns meses depois do “seu eclipse” e tal foi o impacto de seu texto que, acredito, também poderia chamá-lo de “meu eclipse”. Um grande abraço, Pedro.

    Comentário por Pedro Faria Borges — 22/03/2022 @ 2:32 pm | Responder

    • Pedro: Nosso convívio tem iluminado minhas ideias. Ajuda-me a evitar eclipses no pensamento e a combater o inimigo Alzheimer. Muito obrigado e um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 22/03/2022 @ 4:25 pm | Responder


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