• Respeita o I
Está cada vez mais difundido o hábito de colocar um pingo no I maiúsculo. Contudo, esse procedimento está completamente errado. Parece que virou mania, estimulada pelos grafiteiros e pichadores. Costumeiramente, fazem gracinhas com o coitado do I, colocando pingos onde eles não poderiam estar. Mas se esquecem de colocar acentos onde são obrigatórios, por exemplo, nas palavras INDÍCIO e ÍNTERIM.
– Tira os pingos, mantendo os acentos!
Tão disseminada ficou a mania do pingo que, até mesmo nas redações de candidatos às universidades, eles pululam nos Is maiúsculos. Quanto aos corretores das provas, a maioria os aceita, como se estivesse tudo certo. Ao adentrarem nessas instituições de ensino, as coisas vão rolando do mesmo jeito. Contudo, ninguém conseguirá cometer o erro usando teclados, sejam do computador ou do celular, pois as máquinas não permitem.
Na verdade, pingando aqui e acolá nos manuscritos, os pingos vão interferindo na educação brasileira, ou seja, levando o conhecimento rumo ao abismo.
Pois bem, para que se entenda quão sérios são esses atropelos da escrita, torna-se necessário contar uma breve história da origem das maiúsculas e, na sequência, a das minúsculas.
Por volta do ano 360 d.C. (século IV), surgiu na Europa um estilo de letras que, ao longo do tempo, foi caindo em desuso. Trata-se da criação de um godo – ou gótico –, o bispo de nome Ulphilas(1), que usou-a para uma tradução da Bíblia na sua língua mãe, a gótica, pertencente ao grupo germânico. Naqueles tempos, ainda não existiam as minúsculas.
Letras carolinas sem pingos nos is.
Porém, no final do século VIII (701-800 d.C.), por iniciativa do imperador Carlos Magno(2), ocorreu um fato revolucionário, qual seja, a criação de uma alternativa tanto ao estilo gótico, bem como aos outros existentes. Trazia como novidade as letras minúsculas. O encarregado para o trabalho foi o monge Albinus Flaccus(3) – mais conhecido como Alcuíno. Também por interesse do imperador, ele fundara um scriptorium* na cidade de Tours, na França. — * Instituição destinada a fazer cópias de manuscritos.
Essas variantes do alfabeto receberam o nome de letras carolinas, em homenagem ao imperador, que mal sabia ler e escrever. Porém, após o ano 1.000, a minúscula carolina evoluiu para letras mais arredondadas. No caso, ocorrendo sua introdução como minúscula do estilo gótico. Essa versão veio a se propagar da França em direção à Inglaterra e, tempos depois, no século XII, chegando ao espaço germânico.
Mais adiante, já ao final do século XIV (1301-1400), notava-se uma dificuldade generalizada na compreensão dos caracteres correntes, fossem eles carolíngios ou góticos. Maiores impedimentos ocorriam nesse segundo estilo. É fácil imaginar o sacrifício exigido a um leitor, colocado em um cômodo mal iluminado, tentando ler um manuscrito em letras góticas.
Assim foi que, diante de todas essas dificuldades, tornou-se necessário criar melhor alternativa. Especialmente para implementar a divulgação do recém surgido Humanismo, movimento intelectual cujas origens remontam à Itália do século XIV. No seu contexto, evidenciava-se um forte interesse pelo passado, ou seja, o da cultura clássica.
Maiúsculas góticas de Ulphilas. / Minúsculas góticas, de 1407 d.C. (Malmesbury Bible).
Para entender o significado do Humanismo(4), vale lembrar quem foi seu o primeiro estimulador, ou seja, o poeta Petrarca(5), quando redescobriu manuscritos antigos que escondidos nas gavetas do esquecimento. Naquele momento, entre as pessoas mais ilustradas, novas ideias estavam a surgir, procurando-se enaltecer os valores inerentes ao ser humano. É importante dizer que eram pautados por um desligamento das imposições religiosas praticadas até então. Por outro lado, como se sabe, ao chegar o século XV, o Humanismo se espalhou por toda a Europa.
No que toca à escrita e de modo a facilitar a divulgação dos novos pensamentos, houve o empenho em desenhar mais um alfabeto de letras minúsculas. Sua plena configuração, formando um conjunto de letras maiúsculas e minúsculas, é devida a Poggio Bracciolini(6), também participante do movimento humanista. Para tanto, a inspiração veio das minúsculas de Alcuíno, criadas lá no século VIII.
O autor era um apaixonado pela leitura, escritor e investigador de escritas antigas. Ademais, devido ao seu notório saber, conseguiu galgar os mais altos postos junto aos poderes eclesiásticos. No topo da sua carreira, tornou-se secretário do papa Martinho V(7). Foi nessa época que reconfigurou o desenho das letras. Mesmo assim, tanto o I maiúsculo quanto o minúsculo continuaram livres do pingo.
Letras de Poggio, secretário do Papa Martinho V, com os “is” sem pingos.
ADVENTO DO PINGO
Quanto ao pingo no i minúsculo, ele só foi aparecer bem mais tarde, mas devido à necessidade de fazer distinção entre os caracteres, especialmente o l (letra ‘ele’, minúscula). Atualmente, quando o manuscrito tem sido assassinado a toda hora, sempre se vê alguém escrevendo textos longos só em maiúsculas ou com uma indiscriminada mistura com as minúsculas. E pior, colocando o tal pingo no I maiúsculo.
A partir do i, surgiu também uma metáfora, quando se diz “colocar os pontos nos is“. Nesse sentido, mostra o intuito de tornar mais clara uma ideia. A origem histórica da expressão remonta, provavelmente, ao século XVII.
Naquela época, os escribas e copistas, utilizavam pena e tinta para fazerem o seu trabalho. Ocorria que, por motivo de clareza, passaram então a sobrepor o referido pingo aos is e aos jotas. Contudo, durante a revisão dos textos, sempre notavam que alguns ficavam faltantes. Assim sendo, ao perceberem os erros, se fazia o complemento “colocando os pingos nos is“, como também nos jotas.
Bem mais adiante, um enorme estímulo para errar com o pingo surgiu a partir dos tempos da Primeira Guerra mundial. Naquele momento, houve uma disseminação dos pingos nas maiúsculas, provocada por alguns que se diziam intelectuais ou artistas plásticos. Eram partícipes do movimento dito como Dada ou Dadaísmo(8). Cabe notar que, naqueles dias, o comunismo e o anarquismo se mostravam poderosos para alimentar as revoltas da intelectualidade.
Profusão de pingos nos Is, em “L’oeil cacodylate” (detalhe, por Picabia).
Entre os notáveis do movimento Dada, se alinhava Francis Picabia(9). Trata-se de um francês, que conseguiu produzir o suprassumo da balbúrdia, tanto nas artes visuais, quanto na escrita e na literatura. Junto com seus companheiros, contrariamente aos humanistas, renegava os valores do passado, mas também aqueles que já estavam bem sedimentados na cultura. Picabia deu um exemplo gritante do mau uso do pingo na obra “L’oeil cocodylate” (veja ilustração acima). Ajudou a disseminar o erro do pingo.
Esse dadaista empedernido não tinha limites para seus deboches. Em uma revista criada por ele, que levava o nome de “391” e no exemplar de novembro de 1920, teve a ousadia de escrever:
“Jesus Cristo Rastaquera – O rastaquera (idiota metido a rico) é possuído pelo desejo de comer diamantes. É dono de alguns ornamentos díspares e de sentimentos ingênuos, é simples e terno; faz malabarismos com todos os objetos que lhe caem na mão, não sabe usá-los, só quer fazer malabarismos – não aprendeu nada, mas inventa. O rastaquera é tão somente uma espécie de equilibrista.” (10)
Letras maiúsculas com pingos indevidos.
Mais recentemente, nos Estados Unidos, um renomado comuno-anarquista, falecido em 2006, de nome Murray Bookchin(11), disse que, no mundo atual, um malfeito corre paralelamente à arte. Com muita propriedade, denominou-o como “anarquismo de estilo de vida”, o qual condenava. Desse modo, se manifestou:
“Estranhamente, muitos anarquistas de estilo de vida, agem como os visionários de uma Nova Era. Têm uma capacidade notável de imaginar que podem mudar tudo. Tendem a levantar fortes objeções quando são solicitados e a mudar qualquer coisa na sociedade […] Nesses casos, têm devaneios místicos e transformam seu anarquismo em uma forma de arte mas, depois, recuando para o quietismo social.” — Em “What is Communalism? The Democratic Dimension of Anarchism”.
Pois bem, está visto que alguns desses rebeldes do I praticam a arte anônima e urbana. Aquela, cujas designações têm variado, tais como grafite, pichação, arte sabotagem, terrorismo poético, etc. Assim, passo a passo, não se cansam de atropelar a história e destruir o bom-senso. Pode-se entender que o anarquismo de estilo de vida é também um diagnóstico, mas mostra apenas a ponta de um iceberg. Será que a doença tem cura?
Por Eduardo de Paula
Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella
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(1) ULPHILAS – (*c.311 d.C. /Constantinopla, †383).
(2) CARLOS MAGNO – (02.04.742 d.C. / †28.01.814) No início da Idade Média, unificou a maior parte da Europa ocidental e central. Foi o primeiro a governar da Europa ocidental, desde a queda do Império Romano do Ocidente, cerca de três séculos antes.
(3) Albinus Flaccus (ou Alcuíno) – (York, Inglaterra, *c.735 / Tours, França, †19.05.804) Teólogo, religioso, filósofo, gramático, matemático, erudito e pedagogo.
(4) Humanismo: se define como filosofia moral, que atribui ao ser humano o direito e o dever de dar sentido e de traçar seu próprio estilo de vida.
(5) PETRARCA, Francesco Petrarca – Arezzo, Itália, *20.07.1304 / Arquà, Itália, †19.07.1374). Intelectual, poeta e humanista. Famoso, principalmente, devido ao seu romanceiro.
(6) BRACCIOLINI, Poggio – (*11.02.1380 / †30.10.1459) Humanista do início da Renascença. Entre suas descobertas bibliográficas, guardadas nas prateleiras dos monastérios, estão a obra de Lucrecius, “De rerum natura”, e a de Vitruvius, “De architectura”. Nesta segunda, aparece a primeira descrição do que, mais tarde, veio a gerar a ideia da “Divina proporção“. O frade Luca Pacioli e Leonardo da Vinci encamparam aqueles conhecimentos, que se resumem na relação phi = 1:1,618, ou seja, o “Número de Ouro“.
(7) MARTINHO V – Nome de batismo: Oddone Colonna (Genazzano, Itália, *25. 01.1369 / Roma, †20.02.1431). Papa de 1417 a 1431.
(8) O dadaísta Tristan Tzara escreveu um Manifesto, sobre o significado do movimento. Parte dele diz: “Dada nada significa. / Se acharmos fútil e não perdermos tempo com uma palavra, que não quer dizer nada… O primeiro pensamento que passa pelas cabeças é bacteriológico: de encontrar sua origem etimológica, histórica ou psicológica, pelo menos. Ficamos sabendo no jornal, que os negros Krou chamam o rabo da vaca sagrada de DADA. O cubo e a mãe, em uma determinada parte da Itália, são DADA. Um cavalo de madeira e a enfermeira, dupla afirmação em russo e em romeno, é DADA. Sábios jornalistas veem isso como uma arte para bebês, outros, santos jesuschamandoascriancinhas do dia, o retorno ao primitivismo seco e barulhento, barulhento e monótono.”
(9) PICABIA, Francis-Marie Martinez – (Paris, *22.01.1879 / Paris, †30.11.1953). De 1909 a 1911, esteve vinculado ao cubismo e foi membro do grupo “Puteaux”, onde conheceu os irmãos Marcel Duchamp, Jacques Villon, Suzanne Duchamp e Raymond Duchamp-Villon. / O poeta Murilo Mendes, brasileiro, sofreu forte influência do Dadaísmo, fazendo com que, mais tarde, abraçasse o Surrealismo. Em 1949, Picabia ilustrou seu livro de poemas “Janela do Caos”, impresso em Paris. São seis litografias que servem, também, para mostrar sua total incapacidade para a prática da arte do desenho. (Anexo: folha de rosto e ilustração).
(10) Rastaquera – Leia também, clique: “No rastro do esnobe”.
(11) BOOKCHIN, Murray – (New York, USA, *14.01.1921 / Burlington, Vermont, USA, †30.07.2006) Escritor, orador, professor, historiador e filósofo político anarquista.