Sumidoiro's Blog

01/05/2024

TIRA O PINGO

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 8:24 am

• Respeita o I 

Está cada vez mais difundido o hábito de colocar um pingo no I maiúsculo. Contudo, esse procedimento está completamente errado. Parece que virou mania, estimulada pelos grafiteiros e pichadores. Costumeiramente, fazem gracinhas com o coitado do I, colocando pingos onde eles não poderiam estar. Mas se esquecem de colocar acentos onde são obrigatórios, por exemplo, nas palavras INDÍCIO e ÍNTERIM.

– Tira os pingos, mantendo os acentos!

      Tão disseminada ficou a mania do pingo que, até mesmo nas redações de candidatos às universidades, eles pululam nos Is maiúsculos. Quanto aos corretores das provas, a maioria os aceita, como se estivesse tudo certo. Ao adentrarem nessas instituições de ensino, as coisas vão rolando do mesmo jeito. Contudo, ninguém conseguirá cometer o erro usando teclados, sejam do computador ou do celular, pois as máquinas não permitem.

Na verdade, pingando aqui e acolá nos manuscritos, os pingos vão interferindo na educação brasileira, ou seja, levando o conhecimento rumo ao abismo.

Pois bem, para que se entenda quão sérios são esses atropelos da escrita, torna-se necessário contar uma breve história da origem das maiúsculas e, na sequência, a das minúsculas.

      Por volta do ano 360 d.C. (século IV), surgiu na Europa um estilo de letras que, ao longo do tempo, foi caindo em desuso. Trata-se da criação de um godo – ou gótico –, o bispo de nome Ulphilas(1), que usou-a para uma tradução da Bíblia na sua língua mãe, a gótica, pertencente ao grupo germânico. Naqueles tempos, ainda não existiam as minúsculas.

Letras carolinas sem pingos nos is.

Porém, no final do século VIII (701-800 d.C.), por iniciativa do imperador Carlos Magno(2), ocorreu um fato revolucionário, qual seja, a criação de uma alternativa tanto ao estilo gótico, bem como aos outros existentes. Trazia como novidade as letras minúsculas. O encarregado para o trabalho foi o monge Albinus Flaccus(3) – mais conhecido como Alcuíno. Também por interesse do imperador, ele fundara um scriptorium* na cidade de Tours, na França. — * Instituição destinada a fazer cópias de manuscritos.

Essas variantes do alfabeto receberam o nome de letras carolinas, em homenagem ao imperador, que mal sabia ler e escrever. Porém, após o ano 1.000, a minúscula carolina evoluiu para letras mais arredondadas. No caso, ocorrendo sua introdução como minúscula do estilo gótico. Essa versão veio a se propagar da França em direção à Inglaterra e, tempos depois, no século XII, chegando ao espaço germânico.

Mais adiante, já ao final do século XIV (1301-1400), notava-se uma dificuldade generalizada na compreensão dos caracteres correntes, fossem eles carolíngios ou góticos. Maiores impedimentos ocorriam nesse segundo estilo. É fácil imaginar o sacrifício exigido a um leitor, colocado em um cômodo mal iluminado, tentando ler um manuscrito em letras góticas.

Assim foi que, diante de todas essas dificuldades, tornou-se necessário criar melhor alternativa. Especialmente para implementar a divulgação do recém surgido Humanismo, movimento intelectual cujas origens remontam à Itália do século XIV. No seu contexto, evidenciava-se um forte interesse pelo passado, ou seja, o da cultura clássica.

Maiúsculas góticas de Ulphilas. / Minúsculas góticas, de 1407 d.C. (Malmesbury Bible).

      Para entender o significado do Humanismo(4), vale lembrar quem foi seu o primeiro estimulador, ou seja, o poeta Petrarca(5), quando redescobriu manuscritos antigos que escondidos nas gavetas do esquecimento. Naquele momento, entre as pessoas mais ilustradas, novas ideias estavam a surgir, procurando-se enaltecer os valores inerentes ao ser humano. É importante dizer que eram pautados por um desligamento das imposições religiosas praticadas até então. Por outro lado, como se sabe, ao chegar o século XV, o Humanismo se espalhou por toda a Europa.

No que toca à escrita e de modo a facilitar a divulgação dos novos pensamentos, houve o empenho em desenhar mais um alfabeto de letras minúsculas. Sua plena configuração, formando um conjunto de letras maiúsculas e minúsculas, é devida a Poggio Bracciolini(6), também participante do movimento humanista. Para tanto, a inspiração veio das minúsculas de Alcuíno, criadas lá no século VIII.

O autor era um apaixonado pela leitura, escritor e investigador de escritas antigas. Ademais, devido ao seu notório saber, conseguiu galgar os mais altos postos junto aos poderes eclesiásticos. No topo da sua carreira, tornou-se secretário do papa Martinho V(7). Foi nessa época que reconfigurou o desenho das letras. Mesmo assim, tanto o I maiúsculo quanto o minúsculo continuaram livres do pingo.

Letras de Poggio, secretário do Papa Martinho V, com os “is” sem pingos.

ADVENTO DO PINGO

Quanto ao pingo no i minúsculo, ele só foi aparecer bem mais tarde, mas devido à necessidade de fazer distinção entre os caracteres, especialmente o l (letra ‘ele’, minúscula). Atualmente, quando o manuscrito tem sido assassinado a toda hora, sempre se vê alguém escrevendo textos longos só em maiúsculas ou com uma indiscriminada mistura com as minúsculas. E pior, colocando o tal pingo no I maiúsculo.

A partir do i, surgiu também uma metáfora, quando se diz “colocar os pontos nos is“. Nesse sentido, mostra o intuito de tornar mais clara uma ideia. A origem histórica da expressão remonta, provavelmente, ao século XVII.

Naquela época, os escribas e copistas, utilizavam pena e tinta para fazerem o seu trabalho. Ocorria que, por motivo de clareza, passaram então a sobrepor o referido pingo aos is e aos jotas. Contudo, durante a revisão dos textos, sempre notavam que alguns ficavam faltantes. Assim sendo, ao perceberem os erros, se fazia o complemento “colocando os pingos nos is“, como também nos jotas.

Bem mais adiante, um enorme estímulo para errar com o pingo surgiu a partir dos tempos da Primeira Guerra mundial. Naquele momento, houve uma disseminação dos pingos nas maiúsculas, provocada por alguns que se diziam intelectuais ou artistas plásticos. Eram partícipes do movimento dito como Dada ou Dadaísmo(8). Cabe notar que, naqueles dias, o comunismo e o anarquismo se mostravam poderosos para alimentar as revoltas da intelectualidade.

Profusão de pingos nos Is, em “L’oeil cacodylate” (detalhe, por Picabia).

      Entre os notáveis do movimento Dada, se alinhava Francis Picabia(9). Trata-se de um francês, que conseguiu produzir o suprassumo da balbúrdia, tanto nas artes visuais, quanto na escrita e na literatura. Junto com seus companheiros, contrariamente aos humanistas, renegava os valores do passado, mas também aqueles que já estavam bem sedimentados na cultura. Picabia deu um exemplo gritante do mau uso do pingo na obra “L’oeil cocodylate” (veja ilustração acima). Ajudou a disseminar o erro do pingo.

Esse dadaista empedernido não tinha limites para seus deboches. Em uma revista criada por ele, que levava o nome de “391” e no exemplar de novembro de 1920, teve a ousadia de escrever:

“Jesus Cristo Rastaquera – O rastaquera (idiota metido a rico) é possuído pelo desejo de comer diamantes. É dono de alguns ornamentos díspares e de sentimentos ingênuos, é simples e terno; faz malabarismos com todos os objetos que lhe caem na mão, não sabe usá-los, só quer fazer malabarismos – não aprendeu nada, mas inventa. O rastaquera é tão somente uma espécie de equilibrista.” (10)

Letras maiúsculas com pingos indevidos.

      Mais recentemente, nos Estados Unidos, um renomado comuno-anarquista, falecido em 2006, de nome Murray Bookchin(11), disse que, no mundo atual, um malfeito corre paralelamente à arte. Com muita propriedade, denominou-o como “anarquismo de estilo de vida”, o qual condenava. Desse modo, se manifestou:

“Estranhamente, muitos anarquistas de estilo de vida, agem como os visionários de uma Nova Era. Têm uma capacidade notável de imaginar que podem mudar tudo. Tendem a levantar fortes objeções quando são solicitados e a mudar qualquer coisa na sociedade […] Nesses casos, têm devaneios místicos e transformam seu anarquismo em uma forma de arte mas, depois, recuando para o quietismo social.” Em “What is Communalism? The Democratic Dimension of Anarchism”.

      Pois bem, está visto que alguns desses rebeldes do I praticam a arte anônima e urbana. Aquela, cujas designações têm variado, tais como grafite, pichação, arte sabotagem, terrorismo poético, etc. Assim, passo a passo, não se cansam de atropelar a história e destruir o bom-senso. Pode-se entender que o anarquismo de estilo de vida é também um diagnóstico, mas mostra apenas a ponta de um iceberg. Será que a doença tem cura?

Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

——

(1) ULPHILAS – (*c.311 d.C. /Constantinopla, †383).

(2) CARLOS MAGNO – (02.04.742 d.C. / †28.01.814) No início da Idade Média, unificou a maior parte da Europa ocidental e central. Foi o primeiro a governar da Europa ocidental, desde a queda do Império Romano do Ocidente, cerca de três séculos antes.

(3) Albinus Flaccus (ou Alcuíno) – (York, Inglaterra, *c.735 / Tours, França, †19.05.804) Teólogo, religioso, filósofo, gramático, matemático, erudito e pedagogo.

(4) Humanismo: se define como filosofia moral, que atribui ao ser humano o direito e o dever de dar sentido e de traçar seu próprio estilo de vida.

(5) PETRARCA, Francesco Petrarca – Arezzo, Itália, *20.07.1304 / Arquà, Itália, †19.07.1374). Intelectual, poeta e humanista. Famoso, principalmente, devido ao seu romanceiro.

(6) BRACCIOLINI, Poggio – (*11.02.1380 / †30.10.1459) Humanista do início da Renascença. Entre suas descobertas bibliográficas, guardadas nas prateleiras dos monastérios, estão a obra de Lucrecius, “De rerum natura”, e a de Vitruvius, “De architectura”. Nesta segunda, aparece a primeira descrição do que, mais tarde, veio a gerar a ideia da “Divina proporção“. O frade Luca Pacioli e Leonardo da Vinci encamparam aqueles conhecimentos, que se resumem na relação phi = 1:1,618, ou seja, o “Número de Ouro“.

(7) MARTINHO V – Nome de batismo: Oddone Colonna (Genazzano, Itália, *25. 01.1369 / Roma, †20.02.1431). Papa de 1417 a 1431.

(8) O dadaísta Tristan Tzara escreveu um Manifesto, sobre o significado do movimento. Parte dele diz: Dada nada significa. / Se acharmos fútil e não perdermos tempo com uma palavra, que não quer dizer nada… O primeiro pensamento que passa pelas cabeças é bacteriológico: de encontrar sua origem etimológica, histórica ou psicológica, pelo menos. Ficamos sabendo no jornal, que os negros Krou chamam o rabo da vaca sagrada de DADA. O cubo e a mãe, em uma determinada parte da Itália, são DADA. Um cavalo de madeira e a enfermeira, dupla afirmação em russo e em romeno, é DADA. Sábios jornalistas veem isso como uma arte para bebês, outros, santos jesuschamandoascriancinhas do dia, o retorno ao primitivismo seco e barulhento, barulhento e monótono.”

(9) PICABIA, Francis-Marie Martinez – (Paris, *22.01.1879 / Paris, †30.11.1953). De 1909 a 1911, esteve vinculado ao cubismo e foi membro do grupo “Puteaux”, onde conheceu os irmãos Marcel Duchamp, Jacques Villon, Suzanne Duchamp e Raymond Duchamp-Villon. / O poeta Murilo Mendes, brasileiro, sofreu forte influência do Dadaísmo, fazendo com que, mais tarde, abraçasse o Surrealismo. Em 1949, Picabia ilustrou seu livro de poemas “Janela do Caos”, impresso em Paris. São seis litografias que servem, também, para mostrar sua total incapacidade para a prática da arte do desenho. (Anexo: folha de rosto e ilustração).

(10) Rastaquera – Leia também, clique: “No rastro do esnobe”

(11) BOOKCHIN, Murray – (New York, USA, *14.01.1921 / Burlington, Vermont, USA, †30.07.2006) Escritor, orador, professor, historiador e filósofo político anarquista.

01/04/2024

PERDIDO NA NOITE

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 2:59 am

• Para nunca esquecer

Outro dia, estive em Madrid (na Espanha) e passei por um susto. Havia acabado de jantar, no distrito de Puente Vallecas, lugar não recomendado a estrangeiros. Ali são comuns crimes relacionados ao tráfico de drogas e, também, ataques de gangues. Já era noitinha e estava numa parada de ônibus, esperando a condução para voltar ao meu hotel.

      Ocorreu que o ônibus não aparecia e, para ver se encontrava outra alternativa de transporte, decidi me deslocar para algum lugar mais adiante. Contudo, depois de caminhar uns 200 metros, vi algumas pessoas mal encaradas a caminharem em minha direção. Tive a sensação de que seria assaltado e, no desespero, avancei em direção a uma casa com jardim, onde procurei abrigo.

Alguns minutos depois, uma porta se abriu na varanda e o proprietário chegou até mim, perguntando o que se passava. Vai daí que, no maior sufoco e ainda resfolegante, devido aos meus passos apressados, consegui dizer num espanhol com sotaque bem alterado:

“- Estoy aquí, porque sentí que me iban a robar unos ladrones”.Estou aqui, porque senti que seria assaltado por uns ladrões.

Aquele senhor, com seu semblante nervoso, imediatamente respondeu:

“- No los llames ladrones, son mis amigos! Entremos, porque aquí hace mucho frío.”Não os chame de ladrões, são meus amigos! Vamos entrar, porque aqui está muito frio.

Então, logo que adentramos na casa, ele pegou uma taça e me dirigiu a palavra, assim:

“- Vamos tomar una copa de vino. ¿Como te llamas?” Vamos tomar uma taça de vinho. Como você se chama?

Naquele momento, para ficar mais simpático ao meu receptor, imaginei um estratagema. Lembrei-me do meu amigo brasileiro, descendente de espanhóis, e usei seu nome e sobrenome emprestados. Ou seja, resolvi me anunciar, desse modo:

“- Soy Estevam de Toledo, a su servicio.” — Sou Estevam de Toledo, a seu serviço.

Contudo, a reação daquele indivíduo, de espírito bairrista, foi abrupta. Olhou-me, como se estivesse montado num pedestal, e se manifestou nestas palavras:

“- ¿De Toledo? Pero yo soy de Madrid, hombre!” — De Toledo? Mas eu sou de Madri, homem! (Toledo é outra cidade da Espanha).

Em seguida, levantou uma dúvida:

“- Sospecho que no eres español.”Desconfio que você não é espanhol.

Porém, sem titubear, respondi:

“- Mis padres son españoles y, por tanto, me siento español.”Meus pais são espanhóis e, por isso, me sinto como um espanhol.

Assim sendo, desde que me fez um convite, senti que me aceitaria, quando disse:

“- Pues entonces comamos un poco de queso.” Pois então vamos comer um pouco de queijo.”

Recusei agradecido e completando:

“Vengo del restaurante donde me comí un perro.” Venho do restaurante, onde comi um cachorro.

Contudo, para minha infelicidade, havia dado uma mancada. Queria dizer “pollo” (frango), mas disse “perro” (cachorro). Só percebi tarde demais! Assim mesmo, tentei me justificar, mas dizendo outro enorme absurdo:

“- Perdóname, estoy embarazado.”

Nesse ponto, havia jogado a gota d’água que fez entornar meu balde. Por ser homem, a palavra não me cabia. O correto é embarazada, adjetivo, mas aplicado no feminino, para dizer mulher grávida.

Diante disso, a reação do meu protetor foi rápida e traduzida nestas palavras:

“- Eres un mentiroso y sin vergüenza. No eres español! Dame tu reloj, tu celular, tu dinero y lárgate de aquí.” Você é um mentiroso e sem vergonha. Você não é espanhol! Dê-me seu relógio, seu celular, seu dinheiro e desapareça daqui.

— Ainda bem que foi só um sonho. Quando acordei, senti um tremendo alívio por ter retornado ao meu Brasil.

Por Eduardo de Paula

01/03/2024

JURO QUE VIVI

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 8:11 am

• Levando sustos

Venho relatar algumas vivências, desde 1954, como profissional da imprensa e artista plástico. Procuro ser sincero no que relato, sem paixões, e evitando qualquer partidarismo.

Praça 7 de setembro, vista do alto do edifício do cine Brasil.

Um susto — Volto no tempo, ao final de 1954, quando presenciei um espetáculo de agitação política, se assim posso dizer. Não consigo apontar exatamente a data, mas me lembro de como tudo ocorreu, em plena luz do dia. Estava em frente à confeitaria Elite, na rua da Bahia*, em Belo Horizonte. Fiquei, então, conhecendo uma das técnicas de manipular as multidões, no caso, a da mentira. — * Número 916.

Falo de uma meia dúzia de jovens, liderados por um deles, o mais velho. Este, querendo chamar atenção, pronunciava palavras sem pé nem cabeça. Fazia isso aos gritos, sem parar, ao mesmo tempo em  que agitava uma gravata preta(1). Seu brado se resumia a duas palavras:

“- A gravata do Getúlio, a gravata do Getúlio…”

No meu entender, queria fazer alguma conotação com o ex-presidente Getúlio Vargas, que acabara de cometer suicídio em 24.08.1954. Contudo, de imediato, não entendi o simbolismo que queriam atribuir à gravata preta. Só mais tarde, pude entender que seria uma maluquice de jovens desinformados mas, certamente, manipulados por gente mais esperta e com segundas intenções. Na verdade, bem se sabe, a gravata preta nada tinha a ver com Getúlio.

Dias depois, tive melhor entendimento, qual seja, o de que os mentores daqueles arruaceiros se utilizavam do ex-presidente, equivocadamente e com segundas intenções. De fato, queriam mesmo é atingir Juscelino Kubitschek, então governador de Minas Gerais. Como se sabe, o carismático político se relacionava otimamente com Getúlio.

Então, voltando à sequência do referido tumulto, tenho a dizer que, passados alguns minutos, vi uma turba se formando e, depois, descendo pela rua da Bahia, em direção à Praça 7 de Setembro. No deslocamento, foi se formando uma multidão que, finalmente, veio a estacionar em frente ao cine Brasil. E como não podia ser diferente, logo surgiram alguns soldados da polícia militar, montados a cavalo. Lá estavam para debelar a agitação.

No decorrer do acontecimento, deu para perceber que o grupo de arruaceiros estava preparado para um possível confronto. Ou seja, em certo momento, jogaram pelo chão bolinhas de gude, de modo a derrubar os cavalos. A reação foi imediata e, pouco tempo depois, a Praça 7 ficou tomada por soldados e metralhadoras. Contudo, devido à competência  dos policiais, a multidão acabou por ser dissolvida. 

Havia motivos para tal sorte de eventos. Naqueles dias, a política já estava exacerbada por uma série de protestos, especialmente a prática do quebra-quebra*. Ademais, quaisquer dessas manifestações só provocavam o desejado estardalhaço se chegassem ao coração da cidade, a Praça 7. Para mim, essa arruaça serviu de alerta, pois seria um anúncio de acontecimentos bem mais graves que estariam por vir. — * Atos de vandalização de lojas de comércio.

Colégio Militar no Barro Preto, antigo Colégio Estadual.

Outro susto — Ao chegar o ano de 1957, tendo já trabalhado por quase dois anos na revista Alterosa*, fui investido como soldado do serviço militar obrigatório. Certo dia, me colocaram como sentinela no Colégio Militar de Belo Horizonte**, que funcionava provisoriamente na Av. Augusto de Lima, no bairro do Barro Preto. Ainda me lembro daquele plantão, quando colaborei em dispersar um grupo de arruaceiros, logo à minha frente, decididos a depredar um bonde. Quando refresquei a cabeça, outra vez pude entender que dias difíceis estavam por vir. — * Como ilustrador e diagramador. / ** Hoje Fórum Lafayette.

Mais um susto — No ano de 1964, aos 26 anos de idade, me encontrava como diagramador do jornal Correio de Minas. Naquela época, estava sob as ordens de Fernando Gabeira, chefe de reportagem da publicação. Então, vou falar de ocorrências dos dias 29, 30 e 31 de março. Na primeira data, já se anunciavam acontecimentos da maior gravidade, ou seja, que o Movimento Militar, de 1964, já estava em andamento.

Correio de Minas (30.03.64): “… prontidão a partir das 13 horas de ontem… (29.03.64)”.

O jornal, do dia 30, relatou que, desde o dia 29, já estava instalada uma prontidão militar abrangendo as cidades de Belo Horizonte, Juiz de Fora, São João Del Rei, Pouso Alegre, Itajubá e Santos Dumont. Disso se conclui que os profissionais da imprensa, escrita e falada, já estavam a par do que poderia acontecer. Assim, por via das dúvidas, uns mais que outros, trataram de se precaver de alguma consequência negativa que pudesse atingi-los.

No dia seguinte, o 31, Gabeira estivera em Ouro Preto, fazendo a cobertura de um julgamento que teve repercussão nacional. Trata-se do caso das irmãs Poni.

Edição extra do Correio de Minas (31.03.1964 / 01.04.1964).

Assim sendo, no sentido de iluminar o assunto, tomo emprestadas palavras de Manoel Hygino dos Santos(2), que esteve a reportar o mesmo acontecimento para a revista Manchete. Na publicação, fez referências ao julgamento, mas também ao emergente Movimento Militar de 1964, que visava destituir o presidente João Goulart. Assim escreveu:

“No dia 31 (de março de 1964), em Ouro Preto, iniciava-se o julgamento  do chamado “Crime das Irmãs Poni”, senhoras da alta sociedade(3), experts em armas de fogo e com as quais praticavam tiro ao alvo. Eram Ethel e Edina, esta esposa do alto dirigente da Companhia Morro Velho, da não menos ilustre família Mello Viana, da qual fora um vice-presidente da República*, na gestão de Washington Luís. — * Fernando de Mello Vianna. 

O empresário tinha, ou tivera, um caso com Maria de Lourdes Calmon, jovem e bela pernambucana. O desfecho foi num confortável restaurante na antiga capital dos mineiros. Acompanhadas do jornalista Odin Andrade, elas foram ao estabelecimento e executaram a mulher, que lá já se encontrava. Um acontecimento social e policial importante. No início do julgamento, no fórum local, a elite, inclusive algumas testemunhas, lá se encontravam.” — As duas irmãs foram absolvidas por um júri popular.

Disse mais, ao referir-se ao Movimento Militar. Suas palavras:

“Havia mais um acontecimento, enquanto se recebiam informações desencontradas sobre a movimentação das tropas do general Olympio Mourão Filho, em direção ao Rio de Janeiro. As comunicações eram precárias. Tinha-se de fazer fila na telefônica local, bem distante do fórum, para mandar notícias para as redações em Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou São Paulo. Fábio Martins(4) , hoje professor da UFMG, se esforçava para manter bem informados os ouvintes da rádio Itatiaia*. — * Furo de reportagem no início do Movimento Militar.

Não esperamos a noite toda. Pegamos os carros e voltamos à capital mineira, para estarmos mais perto dos fatos de 31 de março, quando o 1o de abril já se anunciava. A serra estava invadida por uma névoa densa e perigosa. Os faróis na rodovia demonstravam que havia mais do que um mero júri, na velha Vila Rica.” 

Edição normal do Correio de Minas (31.03.1964).

Foram três os advogados defensores das irmãs Poni*. Um deles, Pedro Aleixo, também apoiava o Movimento de 1964. Tanto é verdade que, em 1966, foi convidado pelo presidente Castello Branco para ser Ministro da Educação, cargo que veio a exercer na primeira metade daquele ano. — * Pedro Aleixo, Marcelo Linhares e Décio Fulgêncio.

EDIÇÃO EXTRA

No mesmo 31 de março, terça-feira, por volta de 6 horas da tarde, adentrei na redação do Correio de Minas. Estava a iniciar minha jornada noturna de trabalho. Contudo, para minha surpresa, encontrei a redação vazia. Naquela sala havia apenas uns dois redatores. Digo melhor, havia também um diagramador novato, que se chamava Ivanir Yasbeck(5). Cuidava de preparar o jornal que sairia no dia seguinte.

Daí a pouco, chegou Gabeira, vindo de Ouro Preto. Perguntei a ele o que se passava, mas respondeu cheio de dúvidas. Na verdade, já se sabia do Movimento Militar, porém, as informações eram ainda precárias. Lembro-me de irmos ao teletipo*, em busca de informações, mas surgia tudo muito confuso. As fontes, com certeza, pelo menos a maioria delas, já estavam censuradas. — * Aparelho telegráfico emissor/receptor de textos tipográficos.

Capa da edição extra do Correio de Minas (31.03.1964 / 01.04.1964).

Nas mensagens, que chegavam por teletipo, e naquele mesmo dia, o diagramador Yasbeck encontrou informações a confirmarem que o pessoal do Correio de Minas já tivera conhecimento do que se passava e bem mais cedo. Ou seja, os planos militares já estavam em andamento. Talvez seja um dos motivos de eu ter encontrado a redação vazia. Em um informe, via Associated Press, encontrado por ele, está assim:

“Rio de Janeiro, 31, AP – Un diario de Belo Horizonte dice que las tropas se apoderan de la ciudad de Juiz de Fora y estan encarcelando a dirigentes obreros partidarios del presidente Joao Goulart. Un vocero del Ministerio de la Guerra dijo que eso eran patranas*, rumores tendenciosos.

El Correio de Minas dice que los soldados bloquearon la carretera** principal hacia Rio de Janeiro. Dice que de Belo Horizonte a Juiz de Fora, que sigue em importancia a la capital, fueron despachados camiones com infanteria y se hacia requisicion de otros para mandar…”* Patrañas = Boatos. / ** Estrada.

Mensagem de teletipo recolhida por Ivanir Yasbeck.

Naquela mesma noite, dentro das minhas atribuições, fui encarregado de diagramar e com urgência, uma edição extra do Correio de Minas. Teve seis páginas e foi publicada abrangendo duas datas: 31 de março e 1º de abril. Como era uma edição especial, seria distribuída a qualquer hora da noite do dia 31.

Devido a gravidade dos fatos, desenhei a primeira página lançando uma manchete em letras grotescas, negrito, caixa alta, corpo 60, nestas palavras: MINAS EM ARMAS CONTRA GOULART.

Logo abaixo, coloquei uma enorme foto e com uma legenda em negrito, o que não é habitual. Diz assim: Tropas da PM ocupam pontos estratégicos da Cidade.

Ainda mais abaixo, outra grande foto, com a legenda também em negrito: Tropas do 12 RI foram deslocadas de manhã para Juiz de Fora.

Vale destacar uma nota da primeira página:

Preso Castello e demitido Mourão — Enquanto altas patentes militares estão reunidas na Praia Vermelha, na Guanabara, onde seria instalado o quartel-general da legalidade, foi decretada às 20 horas, a prisão do General Castello Branco e a exoneração do General Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora.

A partir das 20 horas, estavam sendo realizadas reuniões nos Clubes Naval, Militar e no da Aeronáutica. A Central do Brasil e a Leopoldina pararam em virtude da prisão de dois líderes sindicais.”

Tempos depois, descobriu-se que não fazia sentido a informação acima citada, da prisão de Castello Branco. Tratava-se tão somente de um aviso, para que os militares dessem início ao plano de tomada do poder. Tem mais, na mesma edição, lá aparecem três chamadas de primeira página:

“Exército e PM cercam o Estado / Povo faz estoque de gêneros / Prisão de líderes sindicais / PM ocupa rodoviária”

Edição extra do Correio de Minas (31.03.1964 / 01.04.1964).

Agora, nesta releitura do Correio de Minas, posso entender melhor o porquê de ter encontrado a redação vazia, no 31 de março. Duas notas, que estão publicadas, revelam que, desde muito cedo, os jornalistas já sabiam da gravidade do momento. Na página 3, diz uma delas:

“O deputado Gilberto de Almeida, vice-presidente da Assembleia Legislativa ouviu, hoje pela manhã, às 5:00 horas, dois tiros de canhão, segundo presume, detonados no 12 RI, que fica próximo de sua residência.

O parlamentar pessedista (do partido PSD), ao ouvir os disparos, comentou com sua esposa: – Começou a revolução.

Mais tarde, na Assembleia Legislativa, ao relatar os fatos com seus correligionários, verificou que, realmente, tinha se iniciado no país um movimento armado, com eixos em Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul.”

Diz outra nota, na última página, que trata da prisão do jornalista Ênio Fonseca, nesses termos:

“Às 14:00 horas, foi preso o redator chefe do jornal Última Hora(6), jornalista Ênio Fonseca(7), que se encontrava na redação. Conduzido por um furgão da Secretaria de Finanças, marca Chevrolet, 1958, placa 1.11.55, foi levado até o DOPS*, onde permaneceu preso. Logo após prisão do jornalista, a redação do jornal, no edifício Joaquim de Paula, foi fechada e guardada por forte policiamento. Populares, que tentaram fazer manifestações de protesto contra o fechamento da UH, foram dispersados por elementos do DOPS e da Polícia Militar. O jornalista foi solto às 15:55 horas. Sua prisão, segundo o DOPS, deu-se por engano.” — * Departamento de Ordem Política e Social.

Última Hora, único grande jornal pró-Jango, onde trabalhava Ênio Fonseca (31.03.1964).

O DIA SEGUINTE

Ao chegar o 1º de abril, de tardezinha, me desloquei para o trabalho, circulando a pé pelas proximidades do Mercado Central. A redação e oficinas do jornal ficavam lá perto*. Não sofri qualquer incômodo, nem medo. Havia poucas pessoas nas ruas e muito silêncio. Não ouvi um tiro sequer e nem vi militares presentes por onde passei. Belo Horizonte parecia estar mergulhada na santa paz. — * Na av. Olegário Maciel, 604.

Quando cheguei à redação, por lá estava tudo parado e com poucos funcionários, o mesmo também nas oficinas. Infelizmente, o jornal havia sucumbido e sequer me deram uma satisfação. Nem mesmo anotaram a baixa na minha carteira de trabalho. Senti o desprazer de ser lançado abruptamente no “olho da rua”. Depois de meses sem emprego, fui trabalhar noutro jornal, o Diário de Minas, onde colecionei outras histórias. 

Tirei bom proveito de tudo isso, um enorme aprendizado.

Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella 

Leia também, clique: “Saudades de Tuti”

(1) Gravata Preta – Esse adereço foi um dos símbolos do Movimento Integralista, fundado por Plínio Salgado, o qual surgira em 1932 e findara em 1937. Na verdade, coube a Getúlio Vargas colocar o Movimento Integralista na ilegalidade. Contudo, os arruaceiros se utilizavam de qualquer expediente, verdadeiros ou falsos, para montar a cena. 

(2) SANTOS, Manuel Hygino dos – (Montes Claros, MG, *13.03.1930) Jornalista e escritor.

(3) Edina Poni, irmã de Ethel Poni, matou com dois tiros na cabeça, Lourdes Calmon (natural de Pernambuco), sendo esta amante de Fernando Mello Vianna, marido de Ethel. O assassinato ocorrera em 25.06.1962, em Ouro Preto. Ethel imobilizou Lourdes e Edina atirou. A tese da defesa foi de “coação moral irresistível”. A argumentação, aceita pelos jurados, foi de que teriam se rebelado em defesa dos valores morais da sociedade. Esse entendimento livrou as irmãs de punição, mesmo tendo praticado o crime. O local do crime foi o Pouso do Chico Rei, uma sofisticada hospedaria.

(4) MARTINS, Fábio – (Belo Horizonte, †15.08.2023).

(5) YASBECK, Ivanir – (Juiz de Fora, MG, *22.06.1941 / Juiz de Fora, †13.12.2020). Em 1964, mudou-se para o Rio de Janeiro. Como diagramador, passou pelo Jornal do Brasil, o Globo, Extra e O Dia. Foi roteirista de teledramaturgia da Rede Globo e autor literário, com dez livros publicados.

(6) A Última Hora, jornal do Rio de Janeiro, dirigido por Samuel Wainer, tinha uma sucursal em Belo Horizonte. Na grande imprensa, era nitidamente a única apoiadora de João Goulart. No dia 31 de março, como Wainer estava convencido de que os militares assumiriam o poder, naquele mesmo dia, pediu asilo na embaixada do Chile.

(7) FONSECA, Ênio – (Belo Horizonte, †11.01.2012) Bacharel em direito e turismo. Trabalhou nos jornais Última Hora (sucursal MG), Diário de Minas, Estado de Minas e Panrotas. Fundador do jornal MG Turismo e da Abrajet – Minas Gerais. Presidente da Associação dos Jornalistas de Turismo.

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