Sumidoiro's Blog

01/07/2023

BREVE GINÁSIO

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 8:57 am

• História do Anglo-Mineiro

No início do século XX, em Belo Horizonte (MG), para dar sequência ao nível de ensino primário, decidiu-se construir uma escola modelo. Para tanto, foram se aconselhar no Ginásio Anglo-Brasileiro, educandário existente em São Paulo, desde 1899.

Edifício principal do Anglo-Mineiro.

      A iniciativa da criação do educandário partiu de Francisco Mendes Pimentel(1), de Afrânio de Mello Franco(2) e de outros cidadãos. Em 1912, recebeu o registro de Sociedade Anonyma Collegio Bello Horizonte. Em seguida, cuidou-se de construir um magnífico edifício no alto da Avenida Afonso Pena. O início das obras se deu em 1911 e, em 1913, ocorreu a inauguração. Para exercer a função de diretor, chegou em Belo Horizonte, ao final de dezembro de 1913, o professor J. T. Sadler(3), trazendo consigo da Inglaterra vários docentes. Em 1º de fevereiro de 1914, deu-se início às primeiras aulas. — * J. T. Wilson Sadler.

      Os professores, a maioria ingleses, abraçavam o credo anglicano, mas não promoviam nem impunham qualquer orientação religiosa. Uma publicidade na imprensa mostra a que veio o Anglo-Mineiro, dizendo:


“Gymnasio Anglo-Mineiro – Internato e externato para meninos – Diretor: J. T. Sadler, M. A. — Este estabelecimento de instrução e educação foi construído […] no ponto mais alto da Avenida Affonso Penna […]

A turma dos menores se acha instalada tanto para as aulas, como para os dormitórios, em pavilhão separado, tendo também suas dependências particulares. Ao ensino de línguas modernas será dada a mais ampla atenção […] A cultura physica será dos alunos será entregue a um perito experimentado […] A arte da natação será ensinada no novo e magnífico tanque coberto […] Uma enfermeira inglesa, que reside no collegio, cuidará dos meninos que estiverem doentes […]

A educação e a vida do Internato seguirão o systema inglez, reconhecido como o melhor em seus efeitos sobre a formação do caracter e o desenvolvimento physico […] para esse fim, foi contractado na Inglaterra o corpo de mestres, ingleses todos, com excepção dos mestres dos outros idiomas modernos.

A diretoria não se encarrega da instrucção religiosa, porém attenderá cuidadosamente aos desejos dos srs. Paes […]” —Revista Vita, n. 9, 1914.

Euryalo Vianna Cannabrava, Francisco Mendes Pimentel e J. T. Wilson Sadler.


      Contudo, as boas intenções dos ingleses não surtiram o efeito desejado. Ou seja, devido a pressões de algumas pessoas da tradicional sociedade belo-horizontina, bem como de dirigentes de colégios católicos*, o Anglo-Mineiro foi levado a fechar suas portas. Várias adversidades ocorreram durante sua breve existência. Uma delas, grave doença que acometeu a esposa de Sadler, dona Magdalena, a qual veio a falecer em 04.07.1914. * Segundo Pedro Nava, o colégio Arnaldo e o Claret.

      As últimas aulas ocorreram em 1915, fazendo com que as instalações fossem destinadas a outra instituição de ensino, o Gymnasio Mineiro(4).  Este oriundo de Ouro Preto, antiga capital do estado (MG), que já funcionava em Belo Horizonte desde 1898. Mais adiante, depois do Anglo-Mineiro, a edificação veio abrigar o Batalhão do Corpo de Bombeiros, onde permanece até o presente(5).

      Algumas memórias do Gymnasio Anglo-Mineiro foram anotadas pelo ex-aluno Euryalo Vianna Cannabrava(6), no seu livro Meu Fabulário Infantil. É o que se segue:


A EXPERIÊNCIA INGLESA

“À noite deito-me na minha cama solitária e mergulho lentamente no rio das recordações. Elas vêm como vagas em atropelo, saltando umas sobre as outras, algumas vivazes, outras esmaecidas. […] Procuro ressuscitar meus anos de colégio, a experiência inglesa, no alto da Serra*, em Belo Horizonte. — * Atualmente, alto do bairro dos Funcionários.

O Colégio Anglo-Mineiro, na encosta, perto da colina altaneira. As figuras de meus colegas, de Robert, condenado ao suicídio; de Pedro Nava(7), amigo inseparável; de Olímpio, morto ainda criança; de Joaquim Afonso, que urinava nas calças em suas explosões de alegria. Todos eles passam, mãos presas, no cortejo das recordações enfileiradas.

Saindo do grupo escolar de Santa Luzia, minha avó resolveu matricular-me na Escola Inglesa. O tio Teófilo, macróbio, que dançara no baile de coroação da rainha Vitória, elogiara o diretor Sadler e os professores. […] o diretor encarnava a determinação britânica, de sempre alcançar seus objetivos.

Sadler era homem feito para a ação planejada, em todos os seus pormenores. […] Tudo fazia em nome da ordem, pela ordem e para a ordem. […] Ao olhar o diretor, perguntava a mim mesmo se ele tinha alma. A alma, para os professores ingleses, era supérflua, incômoda e, no fundo, uma trivialidade. A imagem de cada professor vem uma após outra.

Mister Rose, alto e corpulento, cheio de nervos e músculos, distante dos alunos, absorvido nas suas preocupações, Mister Jones, baixinho, gordo, lembrava um clown, figura meio burlesca, com o hábito estranho de meter a língua por debaixo do lábio inferior, fazendo-o ressaltar. Não conseguia o respeito dos alunos, que riam dele à bandeira despregada. Lutava para obter de nós migalhas de disciplina. […] Mas tudo em vão. Era realmente cômico quando dizia com sotaque inimitável:

‘- Finando, fique quieto, Finando!’

Finando era Fernando, malandro incorrigível, dado a toda espécie de artimanhas. […] O que menos lhe interessava era estudar. […] O que mais o atraía era, como a todos nós, era a piscina ampla, de águas quietas, mas sedutora na sua profundidade misteriosa.

Natação no tanque (piscina) do Anglo-Mineiro.

Mister Goodber (professor), atleta e nadador era odiado por todos nós, pequenos ou grandes. O que mais detestávamos nele era o riso sardônico, o profundo desprezo por todos que o cercavam. A agressividade fria do gesto e da palavra, que cortava como lâmina afiada. Lembro-me bem dele, em plena classe, discorrendo sobre nossa inferioridade racial, a condição de mestiços barulhentos, vazios de vida interior. […]

E assim passavam os dias, até que grande notícia circulou entre nós, como corrente elétrica por fio metálico. Mister Rose tivera sério atrito com Mister Goodber, a propósito de questões pessoais, fazendo explodir a surda antipatia existente entre ambos. Ajustaram na boa tradição britânica, um encontro armado de luvas de boxe, a portas fechadas, no salão de ginástica.

De manhãzinha, espreitávamos os movimentos dos dois professores, deleitados com a perspectiva da derrota de nosso inimigo. As virtudes de Mister Rose multiplicavam-se aos nossos olhos, como fungos e cogumelos. O seu porte já considerável, alteava-se como as montanhas de ferro que cingiam Belo Horizonte. Parecia-nos um gigante a esmagar o adversário, vibrando as manoplas com o peso da armadura antiga.

À tarde, vimos os dois, claramente, se encaminharem para o salão de ginástica, silenciosos. Era hora do recreio. Rondávamos, dissimulados, à espreita, o coração batendo, às imediações do temeroso reecontro. Mister Jones pressentiu a inquietação generalizada, inventando pretextos para nos afastar do local. Apesar disso, espichávamos olhares longos […] De repente, a porta se abriu e os dois de caras amassadas, com marcas de golpes desferidos a punhos de martelo, conversavam despreocupadamente, como velhos amigos inseparáveis. Fausto segredou-me ao pé do ouvido:

‘- Esses ingleses têm sangue de barata. Olha como voltaram às boas!’ […]

Mister Cuthber era nadador exímio. Ensinava aritmética, de estatura gigantesca, fumando enorme cachimbo. Tinha algo de filósofo, recheava as aulas de comentários sobre a vida e os homens. […] Dizia que era preferível ser cego a ser surdo. Diante do nosso espanto explicava:

‘- O cego pode conservar sua inteligência, mas o surdo, à força de nada ouvir, acaba estúpido como uma pedra.’

Aula de ginástica no Anglo-Mineiro.

[…] Chegara o novo professor. Era ruivo, olhos verdoengos, com reflexos de amarelo sujo. Deixava cair os livros das mãos, não usava a toga oxfordiana, sorria alvarmente para todos, mostrando dentes enormes, afilados como punhais. O apelidamos de Cavalo Baio. […] ensinava geografia, desconhecendo por completo nosso idioma.

Obrigava-nos a ler, durante horas, trechos para ele inteiramente ininteligíveis. Tinha secreto deleite em ouvir nomes bárbaros. Interpretávamos os textos com enxertos maliciosos:

– Os rios mais importantes do Brasil são o Amazonas, o São Francisco, o Córrego do Leitão*…’ – e sufocávamos de riso. — * Córrego de BH – extensão: 10,62 km.

Cavalo Baio percebia a manobra, desconfiado, e cobria-nos de insultos saxônicos que não entendíamos. Certa vez, vi-o sentado, sozinho, na sala de estudos. Entrara ali para apanhar um lápis. Cavalo Baio lia absorvido. Perguntei-lhe o título do cartapácio que tinha nas mãos. Olhou-me longamente e disse rápido:

‘- Shakespeare…’

Era a primeira vez que ouvia esse nome. […] Perguntei-lhe se me emprestaria o livro. – Esse não.’- disse ele.

[…] A tristeza de Cavalo Baio tinha qualquer coisa de hamletiana. A sua frustração provinha de não ter conseguido tornar-se escritor. As tentativas malograram-se, uma por uma. Ninguém se interessava pelos seus poemas, romances ou ensaios. Decidiu, então, ensinar literatura […] Teve que se dedicar à geografia, a mais detestável de todas as disciplinas. Nem assim, como professor, conservou-se durante muito tempo no seu posto. Depois de um ano foi despedido, indo tentar a vida na Argentina.

À esquerda, ressaltam os dois prédios principais do Anglo-Mineiro.

Desconheço o que aconteceu a Cavalo Baio, ao diretor Sadler, a Mister Rose, Mister Cuthbert, Mister Jones e a todos os outros. […] Perdi de vista a maioria dos colegas. Os anos correm céleres, destruindo lembranças. Mas, sempre, fica alguma coisa da borra depositada no fundo da memória. As imagens vão e vêm, jogando ciranda.

Recolho-me de madrugada, no silêncio, ao sabor das impressões, fluindo na deriva. A experiência inglesa fortaleceu-me por dentro. Fez-me olhar a vida de frente, desabusado. Abriu perspectivas desconhecidas, devassou horizontes, destruiu ilusões persistentes. E, sobretudo, endureceu-me. Fiquei rijo no entrechoque, deitando raízes. Suporto o frio, a fome, a sede e a companhia dos imbecis.

Tolero o insulto, desde que seja pequeno. A adversidade não me abate, o sofrimento me retempera. Não tenho medo da morte. Saberei aguardá-la na encruzilhada. A minha única fraqueza é minha filha Regina, ela faz de seu pai o que quer. […]”


Do mesmo modo que Euryalo, seu colega Pedro Nava guardou memórias do Anglo-Mineiro. Elas estão nos seus livros Balão Cativo e Chão de Ferro.

Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

• LEIA mais, clique: “Fala Euryalo”.

——

(1) PIMENTEL, Francisco Mendes – (Rio de janeiro, *20.01.1869 / Rio de janeiro, +30.08.1957) Advogado, magistrado, jornalista, professor e político. Em 1927, coordenou o processo de fundação da Universidade de Minas Gerais e foi seu primeiro reitor. Duas vezes diretor da Faculdade de Direito. 

(2) MELLO FRANCO, Afrânio Camorim Jacaúna de Otingi de – (Paracatu, MG, *25.02.1870 / Rio de Janeiro, †01.01. 1943) Político e diplomata.

(3) SADLER, Joseph Thomas Wilson – (Inglaterra, *14.09.1876 / Inglaterra, †24.08.1954) Filho de George Sadler e Lydia Ann Wilson. Casado com Elena Magdalena Thomas Jones. / Fonte: Mormons, “Family Search”.

(4) Gymnasio Mineiro – Primeira sede em Ouro Preto e, depois, em Barbacena. Mais tarde, transferido para a nova capital (Belo Horizonte), onde funcionou na Rua da Bahia, esquina de Gonçalves Dias, ao lado do Palácio da Liberdade. / Fonte: “Anuário de Minas Gerais”, 1913.

(5) Fonte – “Annuario de Minas Geraes”, 1913, p. 127: “Em 1902, constituio-se a Socied. Anonyma Collegio Bello Horizonte, com capital de 300 contos, para fundar na Capital Mineira um grande Instituto moderno de educação e ensino, por iniciativa dos srs. drs. F. Mendes Pimentel, Afranio de Mello Franco e outros cidadãos. Subscripto o capital necessario e obtidos da Prefeitura Municipal terrenos no saudavel Bairro dos Funccionarios (linha de carris da Serra, ao sopé do Morro do Cruzeiro), fez-se a planta do notavel collegio, ora em construção e que será inauguradp até fins de 1913 […]

(6) CANNABRAVA, Euryalo Vianna Cannabrava – (Cataguazes, MG, *19.02.1906 / Rio de Janeiro, †21.01.1979). Estudou direito na Universidade Federal de Minas Gerais, com doutorado em 1925. Lecionou: Filosofia e História da Filosofia, em 1929, no antigo Ginásio Mineiro, de Belo Horizonte; Psicologia e Lógica, entre 1931 e 1932, na Universidade de Minas Gerais. // Entre 1937 e 1940, foi diretor do Instituto de Investigações Educativas do Distrito Federal. / Em 1937, foi diretor do Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil (atual UFRJ). // Como primeiro classificado em concurso, foi professor de Filosofia no Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, a partir de 1940. / Entre 1940 e 1960, foi editor estrangeiro da revista Philosophy and Phenomenological Research, da International Phenomenological Society. // Foi o único filósofo brasileiro apontado como Fellow, por dois anos consecutivos (1944-1945), da John Simon Guggenheim Memorial Foundation, nos Estados Unidos.

(7) NAVA, Pedro José – (Juiz de Fora, *05.06.1903 / Rio de Janeiro, †13.05.1984). Médico e escritor memorialista. Em 1957, tornou-se membro da Academia Nacional de Medicina.

9 Comentários »

  1. Colégio pouco lembrado. Por muito tempo nem sabia de sua existência. Ah, se não fosse Pedro Nava, Euryalo Vianna Cannabrava e Eduardo de Paula. Pelo que entendi durou pouquíssimo tempo. Inaugurado em 1914 e teve fim em 1915.

    Comentário por sertaneja — 01/07/2023 @ 2:14 pm | Responder

    • Sertaneja: Muito obrigado por suas gentis palavras.
      Um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 01/07/2023 @ 2:35 pm | Responder

  2. Não sabia da existência do Colégio Anglo-Mineiro. Claro que como nasceu não podia durar muito. Obrigada pelo texto do Euryalo Canabrava. Ydernéa

    Comentário por ydernea de souza birchal — 02/07/2023 @ 3:20 pm | Responder

  3. Ydernéa: OK! Muito grato, Eduardo.

    Comentário por sumidoiro — 02/07/2023 @ 5:08 pm | Responder

  4. Eduardo, mais um pouco de nossa História! Que bom saber desses fatos e acontecimentos que nos permitem compreender um pouco mais de nossa formação! A citação do que foi escrito por Euryalo nos mostra a excelência do texto desse mineiro de Cataguazes, terra de bons escritores. Mais uma vez, sou-lhe grato por tais informações. Um grande abraço!

    Comentário por Pedro Faria Borges — 02/07/2023 @ 6:29 pm | Responder

    • Pedro: Fico muito animado com seu apoio.
      Um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 02/07/2023 @ 11:07 pm | Responder

      • Maria Emília: Todo dia 1, publico um novo texto para ser honrado com sua leitura.
        Muito obrigado e um abraço do Eduardo.

        Comentário por sumidoiro — 02/11/2023 @ 2:24 pm

  5. Maravilhoso o seu trabalho. Tanto sobre o Breve Ginásio, quanto sobre a história da faculdade de agronomia e veterinária. E li também sobre a coca. Muito interessante descobrir coisas novas nas antigas. Parabéns!
    Maria Emília de Magalhães Viana

    Comentário por Maria Emília de Magalhães Viana — 02/11/2023 @ 1:21 pm | Responder

  6. Maria Emília: Muito obrigado.

    Comentário por sumidoiro — 02/11/2023 @ 2:25 pm | Responder


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