Sumidoiro's Blog

01/03/2014

O CAVALEIRO DA LUA (III)

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 7:15 am

♦ Duas vidas aos tropeços

Nasceu em 1801, na Dinamarca, uma criança depois batizada como Peder Nicolaj. Sua mãe chamava-se Anna Catharina Fifcher e seu pai Peder Olivarius Claufen. A família Claufen participava de uma associação de comerciantes(1), de Copenhagen, e teve condições de oferecer a educação fundamental para que o garoto se transformasse em notável autodidata. Desde o momento em que o pequeno Peder veio ao mundo, agiram também as forças do destino para que fosse escrita uma intrincada, controvertida e polêmica história de vida.

Post - Bebê ClausenO bebê Peder Nicolaj, nascido em berço de ouro (cena imaginária).

As primeiras marcas do inusitado logo começaram a aparecer. O batizado ocorreu na casa dos pais, em 1801, mas o registro(2) foi anotado somente em 1802, dizendo que Peder Nicolaj era filho de Peder Olivarius Claufen e Anna Catharina Fifcher, exatamente assim. Ora, o sobrenome Claufen – muito comum na Dinamarca – quer dizer filho de Nicolaj (Clau é diminutivo de Nicolaj; fen é filho). Naquela época, escrevia-se o “j” por “i” e o “f” por “s”. Ao transcrever para outros idiomas, que não o dinamarquês, em lugar do “f”, escreveu-se duplo “s”. Na dança das letras foi que o Claufen virou Claussen e Peder virou Peter.

No inicio do século XIX, o personagem chegou ao Brasil, no Rio de Janeiro, em busca da fortuna. Apresentava-se como Peter Claussen e, de tanto lhe perguntarem “Peter, o quê?”, em certo momento, decidiu facilitar as coisas, mudando tudo radicalmente. Passou então a se identificar, eventualmente e segundo as conveniências, como Pedro Claudio Dinamarquez, embora não coubesse a tradução Claudio no lugar de Claussen, pois apenas soava semelhante.

Post - BatizadoBatismo de Peder, que virou Peter, que virou Pedro, que virou Chevalier…

A inspiração de Sumidoiro’s Blog, ao lhe dar mais um nome, ou melhor, o título de “Cavaleiro da Lua”, veio do seu final de vida internado num hospital de lunáticos, em Londres. Por estar imbuído de um projeto de vida de ambições desmedidas, acabou sendo levado a essa tragédia. Só muito recentemente é que tem sido possível recuperar a sua história, em parte divulgada nos dois Posts anteriores, desta sequência. Certamente, ainda deve existir mais coisas escondidas.

No Brasil, suas rotas de aventuras começaram pelo Rio de Janeiro, onde chegou como fugitivo da justiça, segundo palavras de Peter Lund a Eugen Warming(3), quando ambos trabalhavam em Lagoa Santa. Nos primeiros dias, conseguiu se empregar como soldado raso e, depois, trabalhou como vendedor ambulante. Durante a guerra do Brasil com a Argentina prestou serviços como espião. Suas ações prosseguiram, sobretudo, em Minas Gerais. Ali, fixou-se na região de Ouro Preto, exatamente na vila de Cachoeira do Campo, onde foi comerciante. Entre os anos de 1829-1830, ganhou um bom dinheiro com o comércio de escravos. Em 1831, fez no jornal “O Universal”, uma oferta de venda de tecidos em varejo e atacado, o que denota que possuía um negócio de expressivo vulto.

Post - Cachoeira do CampoCachoeira do Campo, com igreja matriz de N. S. de Nazaré, em imagem antiga.

Mais tarde, e por algum tempo, foi fazendeiro na região central do estado, onde adquiriu a fazenda denominada Porteirinhas, situada entre as vilas de Curvelo e Taboleiro Grande (hoje, Paraopeba). Nessa propriedade, criava gado, ao mesmo tempo em que tocava lavoura de mandioca e cana. Provavelmente, também produzia alguma aguardente. Entretanto, seu maior retorno financeiro vinha pela exploração das riquezas de grutas da região, que eram o salitre, vendido para fábricas de pólvora, e os fósseis, exportados para a Europa. A fazenda foi colocada à venda em 1835, Claussen estava com planos de alçar voos mais altos.

Post - Dois anúnciosJornal “O Universal”: Claussen vende fazendas para comprar fazenda e depois vende a Porteirinhas.

Desse modo, de tanto lidar com ossos, fingiu-se de arqueólogo, e, de tanto procurar minerais, fantasiou-se de geólogo. E se aventurava nas ciências naturais, de modo geral. A partir daí, devido à sua personalidade impetuosa e boa lábia de comerciante, conseguiu vender a imagem de cientista, chegando a ser sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro(4). Suas atividades comerciais sempre foram muito conflituosas, tanto na Europa quanto no Brasil, frequentemente gerando polêmicas, fracassos nos negócios e também embates na justiça. Aliás, é por demais sabido que as relações com seu conterrâneo, o famoso naturalista e paleontólogo Peter Lund, azedaram desde os primeiros momentos quando se conheceram.

Post - Volff & SchuchClaussen, negociante briguento, morador em Cachoeira do Campo: não tem parente no Brasil.

O homem era briguento. Claussen andava sempre metido em empreendimentos que envolviam altas somas de dinheiro e suas confusões, voluntárias ou involuntárias − não se sabe − acabavam nos jornais. Evidentemente, não há como julgar cada caso, nem dizer de que lado estava a razão, mas eram sinais que denotavam a personalidade alvoroçada do dinamarquês. Certa feita, um tal de Luiz Fernandes Volff, que se passava por seu primo, obrigou-o a fazer uma denúncia num jornal, pois andava por toda a província de Minas Gerais, fazendo dívidas em seu nome.

Um anúncio sobre esse conflito, mandado publicar(5) por Claussen, em janeiro de 1831, acrescentou um detalhe sobremaneira revelador, pois afirmava categoricamente que não tinha, até então, nenhum parente no Brasil. Em 1838, o acusador foi Roque Schuck, afirmando que Claussen não fora correto nos negócios entre os dois. Do mesmo modo, através da imprensa(6), Claussen contestou o oponente.

Post - TigresAssinatura de Peter Claussen e detalhe da carta sobre a venda dos tigres.

Claussen esteve na Europa em 1840 e, depois retornou com uma encomenda que gerou uma tremenda confusão. Eram duas onças, que pretendeu enviar ao Museu de História Natural de Paris, em 1842. Os passageiros do barco protestaram, quando souberam que poderiam ter as feras por companhia de viagem, redundando no cancelamento da remessa. Em correspondência(7) aos administradores do museu, em 09.05.1842, ele desculpou-se, dizendo:

“O atraso do navio Achille [do] Capitão Semieux, me permite ainda de avisá-los que o mesmo não quis se encarregar de levar a bordo os dois Gatos-Tigre* (*onças), que eu já havia embarcado […]. Os motivos alegados pelo dito Capitão, para esta recusa, advém do fato de que diversos passageiros alegaram que esses Tigres eram ferozes (o que não era o caso), e chegaram até a ameaçar de não mais comprar passagem a bordo, caso persistíssemos a conservar esses animais.” 

BRILHO EUROPEU

A grande jogada de Claussen foi quando decidiu retornar definitivamente à Europa, para vender uma série de invenções, a principal delas o “flax-cotton”, um linho trabalhado de maneira a assemelhar-se ao algodão. Dessa vez, se apresentou ao público e autoridades com o honroso título de cavaleiro (“chevalier”, em francês), que ganhara no Brasil. Virou então o homem de três nomes: Chevalier Claussen, Pedro Claudio Dinamarquez e Peter Claussen, podendo ser tratado de um desses modos, à escolha do freguês.

Aproveitou então a oportunidade para mostrar o produto têxtil na “Great Exibition”, uma feira que aconteceu em Londres, no “Crystal Palace”, durante o ano de 1851. Sua apresentação causou muita admiração entre pessoas do ramo e, também, ao príncipe Albert, marido da rainha Victoria, da Inglaterra.

Post - Crystal Palace pavilO público encantado com as novidades no “Crystal Palace”.

O jornal “The Examiner”, de 07.07.1851, publicou a notícia de uma visita real à feira, quando o príncipe manifestou sua admiração pelas novidades de Claussen. Uma opinião valiosa, porque ele tinha sólidos conhecimentos sobre o cultivo e a industrialização do linho(8). Um resumo do texto:

“Uma manhã luminosa e bonita marcou o início da segunda semana econômica (de ingresso barato) no Palácio de Cristal e, já uma hora antes do horário de abertura, os acessos […] tinham um aspecto de alegria e animação. Multidões foram caminhando em sua direção − alguns em veículos , outros a pé − e, como foram chegando em grupos, até lá pelas dez horas não havia multidões consideráveis à espera. Quando as portas foram abertas, o fluxo ocorreu de modo impetuoso e contínuo, de modo que, já na primeira hora, quinze mil pessoas tinham entrado no prédio. Lá pelas 14 horas, não menos que trinta e nove mil haviam sido contadas.

Post - Amostras

Amostras de linho e “flax-cotton” apresentadas no “Crystal Palace”.

Sua Majestade e o príncipe Albert, com a princesa Louisa, chegaram ao edifício cerca das nove e meia horas, adentrando às seções de alimentos, vegetais e produtos animais crus; e armas e acessórios, na parte de trás da galeria do lado sul. Foi esta a primeira ocasião em que a Rainha e o Príncipe visitaram o Palácio de Cristal (Crystal Palace), com o propósito específico de encontrar-se com os expositores. […] Por volta de trezentos estiveram presentes e os visitantes reais dedicaram um tempo considerável − cerca de uma hora − à inspeção de três seções que tiveram oportunidade de examinar. Entre os objetos, na galeria do Sul, que atraíram a atenção da comitiva real estava o estande do Chevalier Claussen, no qual são mostrados exemplares ilustrativos dos vários casos em que o linho, quando tratado pelo seu processo recentemente patenteado, pode ser aplicado.

O Principe Albert, que durante vários anos dedicou sua atenção ao cultivo e preparação do linho, evidenciou o mais profundo interesse pelo assunto. Ao manifestar o desejo de testemunhar o processo pelo qual a fibra poderia ser transformada em um material semelhante ao algodão, foi prontamente atendido por M. Claussen. Um punhado de linho, em estado bruto, de cor escura, foi colocado em um tubo de vidro, no qual havia uma solução fraca de carbonato de sódio e, tendo lá permanecido durante alguns segundos, foi transferido para outro recipiente contendo uma solução de cloreto de bário. Imediatamente, começou a expandir-se, crescendo todas as direções, como uma esponja, pela ação mecânica dos gases produzidos pela reação química das substâncias utilizadas.

Post - Prince AlbertPríncipe Albert e detalhe do jornal “The Examiner”.

O linho foi, assim, transformado em um material semelhante ao algodão. Sua Majestade e o Príncipe, manifestaram sua admiração pela simplicidade de todo o processo, passando a examinar os vários artigos apresentados pelo Chevalier Claussen, que tinham sido fabricados a partir da fibra tratada. Aí incluindo os fios formados somente de linho, ou misturado com algodão já fiado, tingidos de várias cores; chita, produzida a partir dos fios; e flanela, e pano, também feitos de uma mistura de linho e lã. E os fios, produzidos dentro desse processo, somente com linho, permitem ser industrializados na produção de tecidos.”

DEPOIS DA FEIRA

Parecia que tudo andaria às mil maravilhas, porque os inventos de Claussen, aparentemente, teriam grande aceitação e o dinheiro necessário não faltaria. Mas o sucesso na feira, não refletiu da maneira esperada nos ambiciosos empreendimentos, que já estavam em andamento. Houve um momento em que, à portas da falência, a saída encontrada foi a oferta de ações e outros papéis ao público, visando gerar recursos. O corretor londrino Matthew Plews foi encarregado da venda desses papéis na Inglaterra, Irlanda e Bélgica, que somavam vultosa importância(9). Mas, de repente, houve um contratempo e Claussen se acidentou, sofrendo uma queimadura nos pés, que o obrigou a procurar socorro em um hospital. Precipitaram os acontecimentos um pontapé que desferiu num enfermeiro e, desse ponto em diante (leia o Post “O cavaleiro da Lua – II”), a roda da fortuna começou a girar ao contrário e o acidentado logo foi transferido para um asilo de lunáticos, e depois outro, até o fim de tudo.

Post - AçõesClaussen vende papéis para fazer dinheiro.

Sua mulher, Claudina de Britto Claussen, que havia retornado ao Brasil, doente e em busca de auxílio pelo marido, manifestou-se inconformada com os acontecimentos que presenciara, desde a internação no primeiro hospital (leia o Post “O cavaleiro da lua – II”) . Para ela, não haveria maiores justificativas que recomendassem a transferência para um hospital de alienados mentais. É de se dar crédito às suas palavras, porque hoje se sabe que foram cometidas muitas imprudências nesses antigos hospitais. E, para o historiador fica a dúvida: Claussen estava realmente louco, ou fizeram-no louco? E por quê?

A morte, como indigente, fez com que fosse sepultado no cemitério do “Stone House Hospital”, em lugar ainda não identificado. Ali, no meio de alguns túmulos decrépitos, o cavaleiro descansa junto a um punhado de companheiros de infortúnio. O hospital, hoje transformado em condomínio residencial, pode ser visualizado pelo “Google Maps”, colando na janela de busca a referência numérica em negrito: 51.445076, 0.245164. O cemitério pode ser visualizado ao norte, escondido sob um arvoredo, em 51.447218, 0.241845.

Post - Stone House antigoComplexo de “Stone House”, onde Claussen faleceu. 

DÚVIDAS E REVELAÇÕES

Ao fazer o pedido de naturalização brasileira, em 09.04.1834, Claussen vivia com Claudina na fazenda Porteirinhas, e o fez na câmara municipal de Curvelo, mencionando que era casado. Evidentemente, já estaria ali havia algum tempo pois, naquele mesmo ano, o paleontologista Peter Lund lhe fizera uma visita, quando Claussen lhe passou muita informação sobre a região. Qual seria a idade do casal nessa época?

Quanto ao alegado casamento, é preciso considerar algumas questões. Nos grandes municípios, o registro civil teve seu início por volta do ano de 1875 e, até então, quem cuidava disso era a igreja, que criava obstáculos ao matrimônio entre pessoas católicas e acatólicas. É o que levou o dinamarquês a declarar e assinar, naquela oportunidade, que “professava a religião Catholica Romana”. Mas, pergunta-se, haveria sinceridade nas suas palavras? Fatos futuros viriam contradizê-lo.

Outro ponto a ser esclarecido é a idade verdadeira de Claudina. Pelo obituário publicado na imprensa, sabemos que faleceu em junho de 1863, no Rio de Janeiro, dizendo que estaria com quarenta anos de idade (veja “O cavaleiro da lua – II”). Idade de mulher quase sempre é um enigma; teria ela realmente quantos anos? Há contradição com um documento oficial do censo inglês, que anotou contar quarenta e três anos, em 1861. O levantamento foi realizado em 07.04.1861, por domicílio, verificando cada pessoa residente.

Os dados de Claudina foram os seguintes: “Westminster (bairro onde residia) […] De Britto de Claussen (sobrenome) / Head (cabeça do casal) / Mar (Married = casada) / 43 (idade) / Brezil (Brasil). O marido, naquela data, estava internado no hospício e Claudina se apresentava como cabeça do casal.

Post - De Brito De ClaussenAnotação no censo, 1861: – Westminster / De Britto de Claussen / Head / Mar / 43 / Brezil – .

Continuando: 1861 menos 43 é igual 1818, que seria o ano do seu nascimento. Talvez esta contagem seja mais confiável, mas vamos deixar nossa querida biografada em paz e ainda lhe pedimos desculpas pela indiscrição.

Também pergunta-se: por quê Claudina morreu sozinha (veja “O cavaleiro da lua – II”), ao desamparo dos familiares brasileiros? E vejam que tinha família em condições de socorrê-la! Certa feita, quando se preparava para viajar, do Rio de Janeiro com destino à Europa, solicitou às autoridades brasileiras permissão para embarcar. No despacho da repartição de polícia, datado de 17.06.1840, foi dada a autorização tratando-a como casada mas, no documento de identidade, constava o nome que sempre assinara como solteira. Seu prenome composto, sonoro e delicado, carregava um sobrenome poderoso, ela era Claudina Candida de Britto Ribeiro de Andrade! Denota que não seria uma pobretona e pertenceria a família possuidora de alguma fortuna.

Embora não se tenha um registro de nascimento, a sequência de fatos, datas e sua respeitável assinatura são suficientes evidências para dizer que Claudina é natural da região de Cachoeira do Campo. Com mais certeza, pode-se deduzir que passou sua infância nessa vila.

Post - Saidas do portoDois recortes do “Diario do Rio de Janeiro”: 19.06.1840 e 13.07.1840.

Já se sabe que Peter nasceu em 1801, portanto era dezessete anos mais velho que Claudina. Prosseguindo nessa linha de raciocínio, descobre-se que, de fato, ele vivia com uma adolescente na fazenda Porteirinhas. Para se ter uma ideia, em 1833, ele tinha trinta e dois anos de idade e ela quinze anos (!). E tem mais, como haviam se “casado” em Cachoeira do Campo, algum tempo antes − tudo fala nesse sentido −, entende-se que o dinamarquês madurão enfeitiçou a menininha e retirou-a de casa abruptamente, talvez contra a vontade dos pais. Embora as uniões dessa natureza, com mulheres tão jovens, fossem corriqueiras na época, o fato é que o noivo era um estrangeiro misterioso e com uma vida pregressa já um tanto complicada.

Diante disso, teria a família rompido com Claudina? E mais outra suspeita: se foi identificada na imigração com o nome de solteira, estaria formalmente casada? Serviriam estas constatações para explicar o seu fim de vida ao abandono, tuberculosa, internada no Hospital da Gamboa? Há muito ainda a esclarecer mas, ao final das contas, o que vale é que era apaixonada pelo marido.

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Post - Porteirinha riachoPorteirinhas: paisagem com riacho (por Peter Brandt).

Retorno a Porteirinhas

História e geografia caminham juntas. A fazenda de Claussen ainda existe, certamente em menor extensão, mas com o mesmo nome, sendo que o local exato pode ser visualizado pelo “Google Maps”, onde ainda pode-se ver o Riacho Fundo, que corre em direção a Curvelo. Para tanto, basta copiar e colar, na janela de busca, a seguinte referência numérica: -18.913500, -44.452897, apenas a parte anotada em negrito. Naquele ponto, há uma pista de pouso com as seguintes coordenadas: 18º 55′ 02″ S / 44º 27′ 16″ W.

Porteirinhas abrangia vasta extensão de terra, como revela o anúncio de venda publicado no “O Universal”, em 1835, e sua área seria “para cima de quatro legoas”. A medida, também denominada légua em quadra ou légua de sesmaria, correspondia a um quadrado de 6 km de lado. Para efeito de comparação, a área total seria maior do que a soma de quatro quadrados com essa dimensão. Portanto, terra que não acabava mais! No mesmo anúncio se dizia estar distante “3 legoas do Curvello”, dado que confere com a anotação apontada pelo “Google Maps”.

Post - Antigo quartelQuartel dos Dragões D’El Rey, que abrigou os militares originários do Regimento Regular de Cavalaria.

Retorno a Cachoeira do Campo

Post - Placa quartel

Placa da fundação do quartel de Cachoeira do Campo.

Cachoeira do Campo é distrito de Ouro Preto, Minas Gerais. Situa-se a 18 km da sede do município e a 72 km de Belo Horizonte. O primeiro nome do lugar foi “Cachoeyra”, assim chamado pela gente da bandeira de Fernão Dias, devido a existência de uma cascata de águas cristalinas, no riacho Maracujá. O primeiro morador foi um aventureiro, chamado Manoel de Mello, ali chegado em 1680. O impulso inicial para o desenvolvimento do povoado se deu no ano de 1700, quando faltaram alimentos em Ouro Preto. Em consequência, inúmeras pessoas procuraram aquelas terras para plantar.

Cachoeira do Campo foi também palco de acontecimentos marcantes na história de Minas Gerais. Uma delas durante a Guerra dos Emboabas, entre 1708 e 1709, cuja motivação foi uma disputa pelo controle das minas de ouro. Naquele conturbado momento, foi sagrado pelo clamor popular, na matriz de Nossa Senhora de Nazaré, o primeiro governador “eleito” da história das Américas, Manuel Nunes Viana, o líder os emboabas(11). Como desdobramento desse conflito, a coroa portuguesa determinou a criação da Província de São Paulo e Minas de Ouro (1709). O capitão Antônio de Albuquerque foi, então, nomeado seu governador, tendo como capital Mariana.

Em 1720, Felipe dos Santos foi um dos líderes da denominada Sedição de Vila Rica, contra a instalação das casas de fundição e a cobrança do quinto do ouro. Um episódio notável dessa revolta ocorreu em Cachoeira do Campo, com a prisão de Felipe enquanto pregava a revolta na praça da matriz. Logo depois, esse precursor da Inconfidência Mineira foi julgado, condenado à morte e enforcado, em Ouro Preto, no dia 15 de julho.

Post - Col Dom BoscoColégio Dom Bosco, antigo quartel e coudelaria; e o riacho Maracujá.

Em 1772, o general d. Antônio de Noronha, capitão-geral da Capitania das Minas Gerais mandou construir, em Cachoeira do Campo, um quartel para abrigar o Regimento Regular de Cavalaria, que acabara de ser criado e de cujo efetivo participou o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O agrupamento foi a célula mater da Polícia Militar de Minas Gerais(10). No ano de 1816, decidiu-se adaptar a edificação para ali instalar a coudelaria(12) imperial e que foi inaugurada em 29.07.1819. Aquele foi o maior centro de criação de cavalos de raça da província, laboratório para a gênese de algumas das raças equinas mais famosas do Brasil.

Na primeira metade do século XVIII, com influência e muito dinheiro, uma poderosa aristocracia dominava Cachoeira do Campo, de tal modo que construíram inúmeros prédios que, para os padrões da época, eram considerados suntuosos. A pompa e o luxo, então, tomaram conta do lugar, nessa mesma época em que ali viveram Claudina e Peter.

Post - Terra CachoeiraEm Cachoeira do Campo, José d’Araujo Britto teve Peter Claussen como vizinho.

Em um livro de registro de terras(13), encontra-se uma anotação reveladora, lavrada pelo vigário Joaquim José de Sanct’Anna, que diz:

“O abaixo assignado possue uma porção de terras denominadas – ? – nesta Freguezia da Cayxoeira do Campo, que devidem pelo nascente por muro de Antonio Joaq.m Flores, e Eufrazia Maria de Jezus, pelo puente* (*poente) por muro, e terras que forão de Pedro Dinamarquez, pelo sul devide por muro, e vallo do Campo da Cruz do Monge, e pelo norte devide com terras de Ritta Parreira, pelo Açude, e vallo acima e estas levarão quatro alqueires pouco mais, ou menos. / Caychoeira do Campo, 25 de Setembro de 1855 / José d’Araujo Britto”

As informações mostram que Pedro Claudio Dinamarquez possuiu terras em Cachoeira do Campo. Seria uma chácara e, também, onde ficava sua casa de morada? E por quê não? O homem misterioso necessitava de lugar protegido, para preservar dos olhares curiosos seus segredos e maquinações. Dá-se ideia da localização: nas cercanias do campo da Cruz do Monge, que é onde está, até hoje, a capela de São Sebastião da Cruz do Monge, no arrabalde da Vila Alegre. E vale mais uma pergunta: o proprietário do referido terreno, José d’Araujo Britto, seria parente de Claudina de Britto?

Post - Cachoeira do Campo ruaRua em frente à matriz de N. S. de Nazaré.

O charme do Chevalier

A fantasia de chevalier foi longe demais, divulgada principalmente pela imprensa europeia. Sem dúvida, dava mais charme tratá-lo dessa forma, mas encobria a origem brasileira da comenda. O fato é que o Cavaleiro da Lua foi agraciado, em 05.05.1844, pelo imperador d. Pedro II, com o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo, como mostra a ilustração abaixo. José Carlos Pereira de Almeida Torres, assinou o documento, pela Secretaria de Estado e Negócios do Império(14).

Post - P Claussen cavaleiroPedro Claussen, Cavaleiro da Ordem de Cristo, agraciado por d. Pedro II.

A vila fantasma

O hospital de “Stone House” foi adaptado, para dar lugar a um condomínio residencial. Aqui, pode ser feito um passeio pelas ruínas da vila fantasma.

Clique na flexa:

• Clique com o botão direito e veja todos, “O cavaleiro da lua” I | II 

 

Texto e arte de Eduardo de Paula

Colaboração: Jean-Claude Clausen Lagrange / Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella.

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(1) “Guild” – Inúmeros profissionais, na Dinamarca, se organizavam criando associações denominadas “guilds”. Cada ocupação, tinha uma conotação com o “status” social do profissional e algumas atividades de comércio tinham mais prestigio que outras. O objetivo de cada uma dessas “guids” era cuidar do treinamento de aprendizes e, também, controlar a prática comercial nas várias localidades. Mas nem todos os comerciantes pertenciam às “guilds” e muitos conseguiam receber treinamento fora dessas associações. Usualmente eram estabelecidas em cada cidade.

(2) O batismo foi anotado em livro da igreja de Trinitatis, Copenhagen. − Fonte: Arquivo “Family Search” – Denmark, Church Records, 1484-1941, København, Sokkelund, Trinitatis (1793/1811) -, imagem 147. Arquivo disponibilizado por Jean-Claude Clausen Lagrange. / A igreja de Trinitatis está na área central de Copenhagen; é uma edificação do século XVII. Durante sua existência, sofreu um grande incêndio, em 1728, e foi reconstruída. Durante o bombardeio pelos ingleses, em 1807, foi novamente incendiada e, depois, outra vez recuperada.

(3) WARMING, Johannes Eugenius Bülow – (Mandø, *03.11.1841 / Copenhagen, †02.04.1924). Botânico, mais conhecido como Eugenius Warming, professor na Universidade de Copenhagen, foi diretor do Jardim Botânico dessa cidade. Viveu no Brasil entre 1863 e 1866, trabalhando como secretário particular de Peter Wilhelm Lund, em Lagoa Santa (MG).

(4) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro − Pedro Clausen, sócio correspondente, naturalista, como consta na revista do referido instituto.

(5) “O Universal”, Ouro Preto, 31.01.1831

(6) “O Universal”, Ouro Preto, 28.04.1838.

(7) “Rio le 9 Mai 1842 / Messieurs les Professeurs Administrateurs du Muséum d’Histoire Naturelle à Paris / Messieurs, / Le retard du Navire l’Achille Cap. Semieux, me permet encore de vous prévenir que celui-ci n’a pas voulu se charger d’emporter à son bord les deux Chats-Tigres que j’avais déjà embarqués, comme il conste de la lettre ci-jointe de Monsieur le Consul de France dans cette Capitale. Les motifs allégués par le dit Capitaine pour un tel refus provient de ce que plusieurs passagers se sont permis de dire que ces Tigres étaient féroces (ce qui n’est point les cas), et qu’ils sont allés jusqu’au point de menacer de ne plus prendre passage à son bord dans le cas où l’on persisterait a y conserver plus longtemps ces animaux. Il a par conséquent fallu me soumettre à ce contretemps, mais par première bonne occasion ces animaux vous parviendront infailliblement et ainsi j’espère que ceci n’influera en rien sur l’acceptation de ma traite du 4 Mai de f 4000 que je recommande à votre protection. / Je suis, Messieurs, avec la plus haute estime. / Votre très humble et obéissant / Serviteur / P. Claussen”

(8) Em sua fazenda no Windsor Park, junto ao castelo de Windsor, o príncipe Albert cultivou várias espécies de linho. O castelo de Windsor, situa-se na cidade de mesmo nome, condado de Berkshire.

(9) “Manchester Examiner”, 02.05.1855, anúncio de venda de ações e outros papéis.

(10) A edificação do antigo estabelecimento militar data de 09.06.1875 e recebeu o nome de Quartel dos Dragões D’El Rey e contava com uma fazenda. Ao correr do tempo, teve várias serventias e abrigou, até recentemente, o Colégio Dom Bosco. Hoje funciona como Centro de Convenções Dom Bosco.

(11) Guerra dos Emboabas – Foi um conflito, ocorrido de 1707 a 1709, nas Minas Gerais, pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas de ouro. O embate deu-se entre os desbravadores paulistas e os forasteiros, que vieram depois da descoberta das minas. Os primeiros, porque haviam descoberto os tesouros, se julgavam no direito de explorá-los com exclusividade. Já o outro grupo, era heterogêneo, composto de portugueses e migrantes das demais partes do Brasil, sobretudo da costa leste nordestina, e tinha como líder Manuel Nunes Viana. Essa gente era denominada pelos paulistas como “emboabas”, pejorativamente. Nessa demanda, em novembro de 1708, Cachoeira do Campo foi palco de sangrenta batalha e os paulistas foram derrotados. Pouco tempo depois, Manuel Nunes Viana, aclamado por seus pares, montou um verdadeiro teatro e foi “eleito”, melhor dizendo, autodeclarou-se governador das Minas Gerais.

(12) Coudelaria − O nome vem de “coudel”, que é o mesmo que capitão de cavalaria; por sua vez, “capitão” vem de cabeça (do latim “caput”), porque é o chefe que pensa e comanda.

(13) Arquivo Público Mineiro – Nossa Senhora de Nazaré da Cachoeira do Campo, série registro de terras, notação TP-1-050, p. 37, doc. 488.

(14) Detalhes de documento fornecido pelo genealogista Hugo Forain Júnior. Fonte: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. // A Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo foi, originalmente, uma ordem religiosa e militar, criada em 14.03.1319, pela bula papal Ad ea ex-quibus, de João XXII, que assim acedia ao pedidos do rei d. Dinis. Com essa denominação, tornou-se herdeira das propriedades e privilégios da Ordem do Templo, ou Ordem dos Templários. A cruz, seu símbolo característico, tremulou nas velas das caravelas portuguesas que exploravam os mares desconhecidos.

2 Comentários »

  1. Eduardo,

    Como sempre, uma história muito interessante e com detalhes minuciosos, que mostram sua dedicação na pesquisa dos fatos. As coordenadas geográficas enriquecem a narrativa e, tanto servem para a visita virtual pelo Google Maps, como para a visita física, àqueles que se dispõem a visitar estes locais. Parabéns.

    Comentário por João Vianna — 07/03/2014 @ 7:30 am | Responder

    • Olá João:
      A história sem a geografia não existe. De fato, mostrar os locais dos eventos, pelo Google Maps, dá mais credibilidade.
      Muito obrigado e um abraço do Eduardo.

      Comentário por sumidoiro — 07/03/2014 @ 10:54 am | Responder


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