Sumidoiro's Blog

01/12/2018

NA ROTA DO PECADO

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 8:32 am

♦ Com culpa ou sem culpa 

A fonte da luxúria em “O jardim das delícias” (por Hieronymus Bosch, 1515, detalhe).

      Junto à minha simplesmente amiga e colega de trabalho, estava no cinema e perdi interesse pela exibição. Por isso, dormi. De repente, acordei aos sobressaltos e passei a ver na tela toda sorte de obscenidades. Tão incomodado fiquei que pedi à companheira para nos retirarmos, o que fizemos na maior correria.

Já do lado de fora, saímos em errante caminhar, de modo a abolir os maus pensamentos. Contudo, de repente, a amiga lembrou:

“- Cadê o seu queijo?”

Assustado lhe respondi:

“- Ai meu Deus, estava na sacola, pendurada no braço da poltrona! Esqueci naquele nojo de cinema, não volto lá, prefiro perder o queijo.”

Logo em seguida, percebi que havia pisado sem querer num monte de cocô de cachorro. Meu calçado estava imundo. O jeito foi me despedir da companheira e, assim, fui em correria a tratar do meu asseio. Disso vai que, daí a pouco, percebi u’a multidão entremeio ao meu caminho.

Todos se vestiam no capricho, talvez fossem roupas de festa. Os homens usavam turbantes e as mulheres escondiam o rosto com lenços. Pelos meus trajes, estava destoando dos demais, o que me causava um certo desconforto. Ademais, para completar, aquelas pessoas se mostravam muito bem-educadas, distintas!

Pois bem, assim mesmo prossegui junto a elas até que, subitamente, me deparei com um rio, onde encontrei o que procurava, água. Mas, devido à afobação, nele mergulhei de corpo inteiro. Porém, quando me esfriou a cabeça, bateu em mim um sentimento de vergonha. Que absurdo, a imundície do meu corpo turvara aquela limpidez azulada!

De qualquer maneira, após a limpeza, prossegui caminhando pela praia, então molhado pelas canelas. Desse modo, fui acompanhando os demais, que se dirigiam para não sei aonde. Porém, de repente, um homem chegou até mim, dizendo:

“- Conheço você de algum lugar, mas não me lembro do seu nome.”

Sem me esconder, lhe enviei a resposta:

“- Sou Fulano de Tal.”

Imediatamente, o interlocutor avançou na conversa, dizendo:

“Ah, olha só, você é da família De Tal! Conheci muito bem o seu pai.”

Daí, outras pessoas vieram a me rodear e a dizer da minha família. Uma: “- Conheci seu avô!” Outra: “Conheci seu bisavô.” E assim por diante. Isso me trouxe uma sensação de aconchego e, ao mesmo tempo, de ser benquisto, o que me colocou mais à vontade.

Éden (Paraíso) com rios Fison e Geon, desaguando no Golfo Pérsico & detalhe (Pieter Mortier, 1700).

Pois bem, aos poucos, fui tomando coragem e a um deles fiz duas perguntas:

“- Senhor, de onde veio? Que rio é esse, com essa água tão bonita de fazer doer os olhos?”

Logo, vieram respostas:

“- Vim do lado donde nasce o sol. Lá está minha morada, à qual chamamos país do Antanho. Agora, estou em retorno e vamos todos juntos para lá. Uma força poderosíssima está a nos mover! E mais, esclareço, aqui não é rio, é mar.”

Porém, minha curiosidade estava a pedir mais detalhes:

“- Então, qual o nome desse mar?”

E ele, solícito, informou:

“- É o do Antanho, melhor dizendo, mar do país do Antanho. Há quem traduza por outros nomes. Daqui a pouco vamos chegar ao rio Fison(1), que você conhece da Bíblia e, em seguida, prosseguiremos para o norte.”

Então retruquei:

“- Mas isso me parece um sonho!”

Imediatamente o instrutor completou:

“- Pode ser, entenda como quiser! Mas, vou lhe dizer mais… A partir de agora, exatamente deste ponto, tudo é livre e nada é forçado. Por outro lado, no domínio do Antanho você continua pecando, querendo ou não querendo. Independe de qualquer vontade, da sua ou de quem quer que seja, tanto faz. O pecado é inevitável!”

“- Mas como é isso? Seria o pecado original?” – indaguei, muito admirado.

Disse ele:

“- Vou explicar tudinho. Aqui no Antanho é onde se pode viver mesmo sem ter nascido, visto que esse lugar está situado muito aquém do útero materno. Por isso é que estamos sabendo dos seus antepassados, desde Adão e Eva.

E tem mais, há tempos já lhe disseram: no começo de tudo não havia pecado e ele só ocorreu depois que apareceu a víbora. Ela mesma está a nos comandar nessa caminhada, não há como escapar do pecado. Prepare-se!” 

“Jardim das Delícias” (por Bosch, detalhe).

Então, sem esconder minha perplexidade, achei melhor mudar de assunto e passei a investigar o ambiente das águas. Logo nas primeiras observações, notei que toda aquela gente estava seminua. As vestes descompostas, mal cobrindo os corpos, permitiam inflamar o desejo dos caminhantes. Parecia muito com algumas pinturas que eu vira nos museus. Diante dessas evidências, me veio a certeza de que fôra transportado para os tempos do Velho Testamento.

Assim, tomado de estupor, prossegui numa sequência de emoções, enquanto descobria os segredos do Antanho e dos seus espíritos. E mais, entendi que não estava a conviver com pessoas de carne e osso, mas com u’a multidão de ectoplasmas*, que me provocavam com atitudes voluptuosas. De qualquer forma, minha aventura prosseguia dali rumo ao desconhecido e, pelo caminho, nada deixei passar despercebido, suponho. — * Ectoplasma: materialização do espírito. 

Em certo momento, devido ao meu cansaço, entendi que já avançara muitas léguas acima do desaguadouro do rio Fison, região que bem descrevera o reverendíssimo bispo de Avranches(2). Até que tive mais uma surpresa, ao entender que estaria próximo do Paraíso Terrestre e seus anexos, tal como ouvira nas aulas de catecismo. De fato, não tardou para lá chegar, de verdade, na bendita terra do Antanho!

Nesse ponto, exausto precisei dormir, o que fiz debaixo de uma árvore. Depois fiquei sabendo, era uma tal de Árvore da Ciência*. Mas, tão logo me restabeleci da longa viagem, resolvi percorrer o território. Em todo lugar por onde passava, senti brisa refrescante, como também um cheiro de incenso. Essas coisas me remeteram para inúmeras passagens da Bíblia. E não é que estavam diante de mim algumas cenas arcaicas? — Gênesis 2:17 – […] Não comas do fruto da árvore da Ciência do Bem e do Mal, porque no dia em que comeres, certamente morrerás.”

Porém, devagar e sempre fui adiante, até que me deparei com um jovem anjo, cara de menino. Logo à primeira vista, me pareceu tê-lo conhecido antes, muito tempo atrás. De minha parte, me senti um ancião, é claro, mas tive dúvidas de como me via. Por isso, me manifestei:

“- Meu Deus! Há quanto tempo a gente não se vê, você por aqui? Estou rebuscando na memória e acredito que estivemos juntos há décadas. Fomos colegas no grupo escolar! Você me parece um anjo, o que anda fazendo por aqui?”

Imediatamente ele respondeu:

“- Não, você deve estar fazendo alguma confusão, sou o pintor Hieronymus Bosch(3) vestido em pele de anjo. Pouco tempo depois que aqui cheguei – em 1516 –, recebi vários encargos, de modo a pagar os meus pecados. O trabalho me rejuvenesce.”

Disse mais:

“Você está pisando no Paraíso Terrestre*, o mesmo que pintei em um quadro. Além dele, me deram a atribuição de tomar conta das suas cercanias. Sempre passo pelo Jardim das Delícias onde tento colocar limites no desvario que anda por lá e antes que vá todo mundo direto para o Inferno. Já avisei àquelas almas: vão acabar se dando mal…” — * Também conhecido como Jardim do Éden.

O inferno, tendo à direita um infeliz sendo devorado pelo “cobrador” (por Bosch, detalhe)

Tomado de susto, indaguei se aquilo seria o mesmo que vi num quadro em exibição no Museu do Prado(4) e assim fui esclarecido:

“- Isso mesmo, nessa ordem: Paraíso Terrestre, Jardim das Delícias e Inferno. Este fica mais embaixo, mas não se aproxime. É terrível!”

Verdade é que, ao ouvi-lo, senti um bafo de enxofre a exalar do chão. É claro, fiquei assustado, mas ao mesmo tempo bastante curioso. Então, pedi ao Anjo, digo pintor, que me contasse mais alguma coisa. E assim ele disse:

“- O Inferno é uma casa de portas abertas, contudo, quem lá entra nunca consegue sair e, mesmo que o consiga, logo estará de volta. O ambiente é excessivamente iluminado, é de uma claridade intensa e permanente, de fazer doer os olhos. Embora, eu o tenha representado mais escuro na minha pintura, foi por uma questão puramente estética. 

Ele está repleto de almas errantes e desesperadas, porque sabem que nunca encontrarão livramento, embora as portas estejam sempre abertas. Quem lá está, perde a noção dos pontos cardeais, não sabe onde fica a direita ou a esquerda, nem a parte de cima ou a de baixo. Também não há como saber se lá fora é dia ou se é noite…”

Nesse momento, interrompi o Anjo com uma dúvida atroz:

“- Essa coisa da qual você fala mais parece um shopping center!”

Daí, ele foi breve e incisivo:

“- É isso mesmo!” – vou continuar explicando:

“- Quando a pessoa adentra nessa casa, imediatamente perde o pouco de razão que lhe resta. Em seguida, passa por um processo de imantação de modo grudá-la para sempre no Inferno. Mesmo que consiga fugir, logo volta, atraída por u’a máquina poderosíssima. Outra coisa: no Inferno, você fica muito excitado e começa a participar de tudo com exagero, pensando que está numa festa sem fim. É muito cansativo!”

E continuou:

“- Lá dentro, aos poucos você vai perdendo tudo que possui, até ficar completamente pelado. Mas, o pior é no momento do acerto de contas… Tem um cobrador velhaco que, tão logo você enfia o cartão de crédito na maquininha, ele lhe devora e não sobra nada.”

Logo em seguida, ao perguntar sobre o Purgatório, o Anjo não se fez de rogado e foi direto ao assunto:

“- Uai! Você ainda não desconfiou? Cada um tem o que merece. O seu fica lá longe, naquele pedaço de onde veio…”

Post - ParaísoO “Paraíso” de Adão e Eva (por Bosch, detalhe).

Realmente, tantas e sombrias revelações me afligiram, de tal modo, que pedi que mudássemos de assunto. Assim sendo, o Anjo passou a discorrer sobre amenidades, inclusive algumas da sua vida pregressa na Holanda. Contudo, ainda me atrevi a lhe fazer outra pergunta que me parecia importante:

“- E o Adão e a Eva, tem noticias deles?”

A resposta foi rápida e cristalina:

“- Infelizmente, não! Cometeram um delito muito grave e foram expulsos(5), e nunca mais soubemos deles.” 

Disse mais:

“Agora, só vejo os descendentes e eles trouxeram do seu pedaço o pior de tudo. Sei que, entre aquele mundaréu de gente, ficaram mais aceites um monte de desvios de comportamento, por isso, estou tendo um trabalho dos diabos para avaliar o que é pecado com culpa ou pecado sem culpa.”

——

“Acta est fabula”: palavras da Roma antiga, que anunciavam o fim do espetáculo.

Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

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(1) RIO FISON – “Gênesis 2.8 — Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado. / 2.9. O Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores, de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal. / 2.10. Um rio saía do Éden para regar o jardim, e dividia-se em seguida em quatro braços: 2.11. / O nome do primeiro é Fison, e é aquele que contorna* toda a região de Evilat, onde se encontra o ouro. / 2.12. O ouro dessa região é puro; encontra-se ali também o bdélio e a pedra ônix. / 2.13. O nome do segundo rio é Geon, e é aquele que contorna* toda a região de Cusch. / 2.14. O nome do terceiro rio é Tigre, que corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. / 2.15. O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo.” / * Contorna: leia-se percorre.  Fonte: Bíblia Católica Online.

(2) Bispo de Avranches (Saint Aubert – Santo Alberto) – (França, *c.670 / †c.715) Fundador do Monastério do Monte Saint-Michel, França.

(3) BOSCH, Hieronymus – (Bois-le-Duc, Holanda, *c.1450 / enterro: Bois-le-Duc, 09.08.1516).

(4) Museo del Prado, Madrid – Um dos mais importantes do mundo. / A obra em referência é conhecida como “O jardim das Delícias” (1490 – 1500). Compõe-se de três quadros unidos – tríptico –, cujo tema é a origem e o destino possível de parte da humanidade. Da esquerda para a direita: Éden, Jardim das Delícias e Inferno.

(5) A Bíblia sugere que Adão fugiu para o oriente além do Éden, uma vez que anjos ficaram a guarnecer a fronteira daquele lado. No Gênesis 2:24 está dito: “E expulsou-o; e colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados com uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida”.

 

01/11/2018

CONHECENDO RIMBAUD

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 6:49 am

♦ Ars longa vita brevis [A arte é longa, a vida é breve]

Todo gênio nasce pronto… Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud foi um desses. Ainda menino, carente de apoio familiar, teve uma infância conturbada. Sua mãe era uma camponesa, seu pai militar – capitão da infantaria –, que abandonou a família depois de gerar cinco filhos.

O moço deixou a casa paterna muito cedo e foi viver longe, numa sucessão de aventuras, temperadas com poesia, álcool, drogas e sofrimentos. Ao se tornar homem feito, mas ainda dominado pela ingenuidade, foi “abduzido” pelo devasso Paul Verlaine. Tudo isso se desenrolou na Belle Époque, tempo de muita arte e cultura, mas também de desvarios.

“Possuo sozinho a chave desse desfile selvagem” — Rimbaud.

poeta Rimbaud iniciou o curso colegial na sua cidade natal* Charleville – França –, matriculado na Instituition Rossat, quando caminhava para os 16 anos de idade. Seu perfil humano e vocação foram descritos por Georges Izambard(1), professor de retórica. — * Charleville- Mézières, *20.10.1854.

Izambard escreveu: 

“Foi na segunda quinzena de janeiro de 1870, que passei a ocupar meu posto na escola de Charleville. […] eu tinha exatamente 21 anos de idade, reduzida experiência, pouco mais que ele. Cheguei disposto a cumprir com alegria minha tarefa de professor. O Rimbaud que vi, ainda consigo ver na minha turma, instalado na primeira fileira, frente ao meu estrado, como um “cisco de gente”, tímido – mas atentem para esse tipo de timidez!

Rimbaud na Instituition Rossat, entre colegas (1864 [?]).

Era um estudante de retórica um pouco contido, sábio e doce, unhas limpas, cadernos sem rasuras, responsável com o dever de casa, obtendo excelentes notas nas avaliações escolares, em suma, uma dessas criaturas fora de série, exemplar e impecável. A ele poderia ser atribuído o superlativo de ser um daqueles eleitos para as competições, joia da escola: assim se mostrava por hábito e não por hipocrisia. Sem dúvida, sem dúvida mesmo, foi esse que vi nos bancos escolares.

Do Rimbaud íntimo, tive contato paralelamente, sempre que estava a me aguardar à saída das aulas. Mostrou-se o verdadeiro intelectual, todo vibrante de paixão lírica e tão ingenuamente orgulhoso ao se enquadrar como tal. Tão feliz, enfim, de encontrar alguém para falar de versos e poetas! É um garoto que, no início, tratei como um companheiro mais jovem e, pouco a pouco, como amigo querido, de quem recebi as primeiras confidências, exacerbadas pela opressão familiar.

Por outro lado, fiz a descoberta da sua imensa vocação literária e, por último, daquelas cálidas manifestações de afeto, com as quais também se mostrou pródigo em relação aos outros. Pois isso se revela em sua carta de 25 de agosto e, ainda mais, naquelas de 5 de setembro e 2 de novembro de 1870, as últimas que encontrei guardadas comigo.

Vitalie, a mamãe severa, e Arthur, após a primeira comunhão.

Izambard também cita uma correspondência que recebeu de Vitalie, mãe de Rimbaud:

“Eu não posso ser mais grata por tudo que você faz por Arthur. Você lhe dá o seu conselho, cuida para que ele faça o dever de casa fora da sala de aula, é tudo o que não tenho como controlar. Mas há uma coisa que eu não poderia aprovar, por exemplo, ler o livro como o que você lhe deu alguns dias atrás (os Miseráveis, V. hugot).

Você deve saber melhor que eu, senhor professor, é preciso muito cuidado na escolha dos livros que queremos colocar sob os olhos das crianças. Ou então imagino, Arthur o acessou sem seu conhecimento. Seria certamente perigoso lhe permitir tais leituras. Tenho a honra, senhor, de lhe prestar meus respeitos. / V*. Rimbaud / 4 mai 1870.” — * Vitalie.

No retângulo em destaque, o Cabaré Verde (Cabaret Vert) do poema de Rimbaud.

Sobre a carta de Vitalie, o professor Izambard comentou:

“Um estupor! Ao mesmo tempo, recebi um aviso do diretor, senhor Desdouest, solicitando que me dirigisse ao seu gabinete depois das aulas. Ele me explicou […] que a dama, muito zangada, veio lhe falar do livro inconveniente, de modo que eu fosse admoestado […] e ainda pediu que prestasse satisfações à mãe sinistra. 

E fui lá: minhas explicações poderiam ser simples, mas a dificuldade seria como colocá-las em palavras. Por isso, antes, tive que extrair das palavras dela um completo “curso” de maldades políticas. Victor Hugo, que ela havia escrito “hugot”, no seu entendimento seria o inimigo do altar e do trono, e justamente censurado por suas obras negativas […] Especialmente Os Miseráveis…”

Fato é que a pressão materna serviu como uma catapulta, lançando o inocente Arthur num mundo desconhecido e perigoso, praticamente sozinho. Apesar de tudo, aos trancos e barrancos, tornou-se um dos maiores poetas da língua francesa. Tal como um meteoro, Rimbaud praticamente produziu sua portentosa obra entre os 16 e 20 anos de idade.

Rimbaud e uma tapeçaria em estilo ingênuo (ou naïf) como a do Cabaré Verde.

Quatro poemas de Rimbaud:

NO CABARÉ VERDE, cinco da tarde

Depois de oito dias, a botina destruí 
No pedregulho da estrada. Cheguei em Charleroi*.
— No Cabaré Verde: eu pedi um sanduíche
Com manteiga e presunto, que chegou meio frio.

Feliz da vida, estiquei as pernas sob a mesa
Verde: contemplei as imagens ingênuas
Da tapeçaria. – E admirei toda a beleza 
Da moça de imensas tetas e vivo olhar.

— Senti que um beijo não a assustaria! —
Sorrindo, trouxe o sanduíche amanteigado
E o pernil morno, num prato colorido.

— O pernil rosado e branco, perfumado por uma 
Pitada de alho, mais um imenso chope espumante 
Que dourado ficou por uma réstia de sol tardio. — *Charleroi, na Bélgica.

SENSAÇÕES 

Nas tardes azuis de verão, irei pelas trilhas
Em meio aos trigais, pisando a erva rasteira:
Sonhador, sentirei o frescor sob os pés.
Deixarei o vento banhar minha cabeça nua!

Mudo ficarei, em nada pensarei:
Mas o amor infinito montará em minh’alma,
E tal como um boêmio irei longe, bem longe,
Pela natureza, – imaginando ter u’a mulher comigo. 

Post - Rimbaud piolhos

AS CATADORAS DE PIOLHOS 

Quando a fronte do menino, vermelha de tormentos,
Implora só o acorde branco, dos sonhos sem perfil,
Duas cuidadoras ao leito chegam, velhas e charmosas,
Os dedos são frágeis e as unhas refletem cor de prata.

Fazem o menino sentar, ao pé de uma janela,
Grande e aberta ao ar azulado, que banha todas as flores
E seus densos cabelos, onde penetra o frio do orvalho.
Neles os dedos finos passeiam, terríveis, encantadores.

Ele ouve o ar, que estão a respirar ofegantes,
Aflorando doçuras vegetais, é perfume de rosas,
E que desaparecem, às vezes, num sopro; salivares
Repetidos sobre os lábios ou desejos de beijar.

Repara seus cílios negros batendo em silêncio,
Perfumados; e seus dedos elétricos e doces
Fazem crepitar onde a preguiça é cinzenta,
E sob poderosas unhas, a morte dos piolhinhos.

Olha! Ele está dominado pelo vinho da Preguiça,
Suspiro de acordeão que provoca delírio:
O menino fica escravo da lerdeza das carícias,
Afundar e morrer, sem cessar, um desejo de chorar.

O ADORMECIDO DO VALE 

É um leito verdejante onde canta o riacho,
Despejando a esmo sobre as ervas farrapos
De prata; onde há sol da montanha intenso,
Brilha: no valezinho se espumam os raios.

Um soldado jovem, boca aberta, cabeça nua,
Molhando a nuca em frescas plantinhas d’água,
Dorme; ele está deitado na erva, sob as nuvens,
Pálido no seu leito verde onde a luz chove.

Os pés entre os lírios, ele dorme. Sorrindo…
Como sorri um menino doente, tira uma soneca:
Natureza, que o embala mansinho: sente frio. 

Os perfumes se foram, não tocam as narinas;
Ele dorme exposto ao sol, u’a mão sobre o peito,
Tranquilo. Tem dois furos vermelhos do lado direito.

SALTO NO ESCURO

Aos 17 anos de idade, ao se relacionar com o poeta Paul Verlaine(2) a vida de Rimbaud se alterou bruscamente. Corria o ano de 1871, no momento em que o moço decidiu lhe enviar alguns poemas e, logo depois, quando mantiveram um encontro em Paris. A aproximação foi um desastre, uma vez que Verlaine o “enfeitiçou”, ao mesmo tempo em que perdia o interesse por Mathilde, sua mulher.

Vai daí que, durante alguns meses, Verlaine, sua mulher e Rimbaud, passaram a viver tal como personagens de um folhetim popular. Ou seja, houve uma relação a três, destruidora, chegando ao ponto em que Mathilde interceptou cartas e poemas trocados pelos dois enamorados. Enfezada, ela iniciou um processo judicial contra o marido, o acusando de pederastia. Disso, resultou que Verlaine e Rimbaud, em 1872, fugiram para Bruxelas, onde viveram dias tumultuosos, completamente drogados pelo terrível absinto, uma bebida que podia levar à loucura.

Post - Verlaine&Rimbaud&IsabelleVerlaine & Rimbaud/ / Isabelle, irmã de Rimbaud.

Em meio a tanto desatino, houve um momento em que Rimbaud quase esfaqueou Verlaine. Isso ocorreu sob um calor escaldante de verão e teve a pior consequência no dia seguinte, 10 de julho de 1873. Ainda pela manhã, tão logo se levantou, Verlaine foi à uma loja de armas e comprou um revólver de sete tiros, pois bem, pretendia cometer suicídio. Naquele meio tempo, também cuidou de enviar cartas para seus amigos, para sua mãe e até para a mãe de Rimbaud, anunciando: “Eu vou morrer”.

Seguidamente, naquelas horas cinzentas, Verlaine passou boa parte do tempo bebendo. Depois do almoço, os dois amantes voltaram a se reunir no quarto compartilhado quando, bruscamente, Rimbaud anunciou a Verlaine que estava de partida, pois se cansara do relacionamento. Pois bem, arrasado diante da perspectiva de perder seu amante, Verlaine fechou a porta, pegou o revólver e gritou:

“Toma, desde que está de partida, esta é para você !” 

E daí disparou duas balas, uma acertou o chão, a outra o braço de Rimbaud. Desse modo, se colocou um ponto final no romance proibido mas, depois disso, Verlaine foi condenado a dois anos de prisão.

Porém, o pior estava ainda para acontecer… Ao se afastar de Verlaine, Rimbaud saiu desatinado em caminhadas pelo mundo, sem rumo e sem qualquer projeto. Primeiramente retornou a Charleville – no final de 1873 – e, em seguida, percorreu vários países da Europa, Egito e Chipre, África e Arábia. Em cada um desses lugares, exerceu diferentes ocupações e cometeu inúmeras estrepolias, até mesmo se envolvendo com o tráfico de armas na Abissínia – hoje, Etiópia –, na África oriental.

Rimbaud, em frente ao Hôtel de l’Univers — Áden, sul do Iêmem.

Ao chegar o ano 1881, Rimbaud teve uma notícia assustadora, a de saber que estava sifilítico. Mas isso não o desanimou de continuar caçando confusões. Em 1882 e se prolongando até 1884, viveu em concubinato com duas mulheres negras, uma após a outra, mas a primeira adquirida como escrava.

Mais adiante, em 1891, levou outro susto, quando passou a sentir dores terríveis no joelho. Chegou ao ponto de ter dificuldades para caminhar. Assim, muito preocupado, em 9 de maio saiu a buscar socorro em Marselha – França –, onde havia o Hospital da Concepção. Lá chegando, ao ser constatado um câncer avassalador, teve sua perna direita amputada. Após a cirurgia e chegado o 23 de julho, deixou o hospital e foi convalescer na fazenda da família, situada na comuna de Roche.

De fato, estava lutando com todas suas forças pela vida, também com a ajuda e carinho da irmã Isabelle(30). Chegaram até mesmo a fazer uma viagem à África, ele apoiando-se em muletas. Contudo, não obtivera a cura esperada, uma vez que voltou a sentir dores atrozes. Até que, em novembro, necessitou voltar ao hospital de Marselha, onde os médicos constaram que o câncer tinha se disseminado. Daí em diante, entrou em franca decadência, até chegar o 10 de novembro de 1891, momento em que chorou abraçado à irmã Isabelle. Ao mesmo tempo, ela o confortava com carinhos e palavras otimistas. Apesar de tudo, Rimbaud ainda teve forças e inspiração para passar à irmã sua última imagem poética:

“Eu vou para o fundo da terra e tu continuarás andando ao sol”.

Rimbaud, 18 anos de idade, após ser ferido a bala por Verlaine, em 1873 (por Jef Rosman).

Logo depois, Rimbaud fechou os olhos e se livrou do seu inferno terrestre. Sim, parece que adivinhara! Após levar o tiro de Verlaine, em 1873, havia escrito um pensamento premonitório: 

“Mas o relógio não tornará a soar senão à hora da pura dor! Serei levado como uma criança para brincar no paraíso, mergulhado no esquecimento de todo infortúnio!” — Em “Une Saison en Enfer: MAUVAIS SANG”.

Rimbaud faleceu em Marselha e seu corpo foi enterrado no cemitério de Charleville. Na lápide se lê: “J. Arthur Rimbaud, 37 anos, 10 novembro 1891 – Reze por ele”.

Texto, tradução e arte por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

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(1) Fonte do depoimento: Cartas inéditas comentadas por Georges Izambard, em “A Douai et Charleville”. Editor: Simon Kra, 6, rue Blanche, Paris.

(2) VERLAINE, Paul – (Metz, França, *30.03.1844 / Paris, França, †08.01.1896).

(3) RIMBAUD, Isabelle – (Charleville, França, *01.06.1860 / Neully-sur-Seine, França, †20.06.1917).

 

01/10/2018

A GÊNESE DO SACANA

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 7:53 am

♦ Palavrão apimentado

Como se diz sacana em inglês? Não é possível… E em francês? Não é possível… Mas, então em espanhol? Também não é possível dizer. Veio de sakana, mas não é a mesma coisa. É intraduzível, tal como saudade… Ao longo do tempo, a descendente foi se ampliando em significado e mudou a grafia. Tem conexões com uma especiaria que era produzida no oriente, a pimenta. Pois são boas as referências históricas que permitem esse entendimento.

Diabo sacana seduzindo o moribundo.

Post - Dizem que o sacana vem da Ásia, é muito provável que seja verdade… Devido a queda de Constantinopla*, em 1453, o caminho que ligava o ocidente ao oriente foi bloqueado. Era conhecido como Rota das Especiarias, aquela que remontava à antiguidade greco-romana, frequentada por mercadores e viajantes mais afoitos. Com a sua interrupção, o fluxo de mercadorias foi estancado e os paladares mais sofisticados da Europa sentiram falta das valiosas pimentas-do-reino, que até então chegavam da Índia. — * Constantinopla: capital da atual Turquia. 

A dieta do povo português foi pouco afetada, porque se resumia a pão de trigo ou centeio, legumes, couves, favas e grãos, frutas, mel, vinho e azeite. Para ele, as carnes eram quase um luxo. Porém os consumidores de proteína animal, evidentemente os mais ricos, sofriam com o fechamento da rota e não aceitavam voltar à antiga condição da dieta insossa. Faltavam-lhes, além da pimenta, a canela, o cravo, o gengibre e a noz-moscada.

Apesar de tudo, as restrições perduraram por quatro décadas, até que dom Manuel I, rei de Portugal, incumbiu Vasco da Gama de viabilizar um caminho por mar que levasse à Índia. De sorte que, tão logo a tarefa foi aceita, o navegador partiu de Lisboa em 1497, tendo aportado em Calecute no ano de 1499.

Em seguida, houve uma segunda expedição, em 1502, com o objetivo de implantar um posto avançado no oriente e consolidar uma melhor rota. O caminho marítimo ficou conhecido como Carreira da Índia.  

Primeira rota de Vasco da Gama. / Pouco além de Goa, até extremo sul, a Costa de Malabar.

Álvaro Velho, um dos embarcados na primeira viagem de Vasco da Gama, trouxe notícias da Índia, dizendo:

“Desta terra Calecut que he chamada Indea Alta (Índia Alta) vay a espiciaria que se come em ponente (poente, oeste) e em levante (leste) e em Portugall e bem asy em todas as provincias do mundo. Asy mesmo vam desta cidade chamada Calecut muitas pedras preciosas de toda sorte […] em esta dita cidade ha de sua propria colhença (colheita) esta espiciaria que se segue: muito gyngivre e pimenta e canela …” — (Relato de Álvaro Velho, passageiro da primeira viagem de Vasco da Gama.) 

PIRATAS SACANAS

Paralelamente à história da pimenta, é preciso destacar as memórias de Marco Polo(1) de quando viajou pelo oriente, mais de 200 anos antes de Vasco da Gama. Passando pela Índia, o aventureiro esteve em Malabar, região costeira a sudoeste do país e contou algo do que viu:

“Malabar é um largo domínio da Grande Índia […] O povo é governado por seu próprio rei, que é independente dos demais […] Tanto aqui (Malabar), como no reino do Guzerat […] há inúmeros piratas que o tempo todo percorrem essas águas com mais de uma centena de pequenos barcos, apreendendo e pilhando todos os navios mercantes que adentram nesse caminho. Eles levam consigo suas mulheres e seus filhos, de todas as idades, que continuam em sua companhia durante todos os períodos de verão. 

De modo que nenhum navio possa fugir deles, ancoram seus barcos à boa distância (cerca de 8 km). Durante o cerco, vinte barcos ocupam um enorme espaço. Quando uma embarcação surge à vista deles, produzem um sinal com fogo ou fumaça. Depois, quando todos se aproximam, capturam o navio que tenta escapar. 

Nenhuma injúria é produzida aos tripulantes mas, tão logo se apoderam do carregamento, eles os remetem de volta à terra, recomendando que façam novo carregamento. Porém, se retornarem ao mar e passarem por eles, outra vez serão saqueados.” — (Relato de Marco Polo a Rutischello da Pisa, quando presos em Pisa, no ano de 1295.)

Oeste da Índia banhado pelo Mar Arábico. / Destaque em amarelo: Costa de Malabar.

Depois da ocupação portuguesa, que teve início em 1510, foram se avolumando os carregamentos pela Carreira da Índia, nos dois sentidos. Ao mesmo tempo, houve a dispersão pelo mundo de várias espécies vegetais, nisso incluindo as nativas da Ásia, África, mas também as das terras recém descobertas da América. Uma delas foi a pimenta malagueta que, de acordo com opiniões divergentes, seria originária da Guiné – noroeste da África –, ou talvez da América. 

Porém, tendo em vista o alto valor das cargas transportadas, os navios eram amiúde saqueados por piratas, quaisquer que fossem suas pátrias. Dentre os mais temidos, havia os que frequentavam o mar Arábico – subdivisão do oceano que banha a costa oeste, ou seja, o Índico. Eram os chamados sakanas*, que viviam em duas províncias, a de Ahmendabad e a de Surat, ambas na região do Guzerat**. De lá, saíam a praticar suas rapinagens, avançando até lugares bem longínquos. — * Os sakanas às vezes são ditos como bawarij, devido ao nome dos seus barcos: barja. /  ** Guzerat: região ao norte da Índia.

Castelo de Surat, no rio Tapti, construído (1540-46) por ordem do sultão Mahmood III. 

Em 1608, o primeiro representante da East India Company* – pertencente aos ingleses – chegou a Surat, com propósitos comerciais. Em 1612, o imperador Jahangir deu autorização para que a companhia lá construísse uma fábrica e um porto. Em 1619, os ingleses estavam definitivamente instalados, captando ou produzindo mercadorias muito disputadas, para depois distribuí-las. O negócio foi crescendo, de modo que passaram a exportar algodão, seda, tintura para tecidos, salitre, chá, ópio, etc. Todos esses ítens eram muito cobiçados pelos sakanas — * Companhia inglesa criada para implementar o comércio na Índia.  

Pois bem, entre 1672 e 1681, outro inglês, chamado John Fryer, conheceu muito bem a Índia e deixou suas impressões em “A New Account of East India”. Numa passagem do livro, disse ele:

“Tendo deixado a foz do rio de Surat (rio Tapti), prosseguimos em direção à costa embarcados, até que atingimos […] a ilha de Diu, o ponto mais a leste da baía de Cambaia, sendo que mais adiante se abre a foz do rio Indus. Em Diu situa-se a fortificação costeira mais ao norte, que possui Portugal. Tão antiga e fortificada, não há outra igual.

[…] Em certo momento, navegando no oceano Índico, com o vento soprando do nordeste, mantivemos as velas recolhidas ao aguardo dos ventos do sul, que veio antes do que esperávamos. Nesse lugar, com toda sua largueza de águas, os piratas sindanians (no modo de dizer dos ingleses) usam de sua malícia para envolver os mercadores que, desarmados, não têm como resistir à sua avidez ilimitada, e se tornam submissos à sua ira sem limites […]

Eles são igualmente cruéis e tão selvagens como os malabares (piratas da costa de Malabar), mas não tão ousados, a ponto de se aventurarem mais distante nestes mares, especialmente quando chega o inverno, e se retiram com o seu saque deplorável para a costa de Sindh, até alcançarem as cavernas onde depositam o produto dos seus roubos. Contudo, não se atrevem a competir com os malabares…”

← Porto de Debal, a 65 km de Karachi.

Depois dos assaltos, os sakanas fugiam em direção ao porto de Debal(2) e, dali, se encaminhavam para as cavernas onde depositavam o produto das pilhagens. O porto e o esconderijo ficavam na província de Sindh(3), o que fez os ingleses lhes atribuírem o apelido de sindanians ou sanganians, porém outros, diziam sakanas. Então é sugestivo que, na língua portuguesa, acabaram por virar sacanas, essa é uma sugestiva probabilidade.

Um historiador, o indiano Khafi Khan(4), que viveu por volta de 1663-1731, assim descreveu os sakanas:

“… são notórios pelas suas piratarias e atacam, de tempos em tempos, os barcos menores vindos de Bandar (na Pérsia) e Mascat (Mascate, na Arábia). Eles não se aventuram a atacar os barcos maiores, que transportam peregrinos”.

Ao correr do tempo e tirando proveito das facilidades, alguns europeus também passaram a cometer pilhagens naqueles mares, o que fez com que lhes servisse o mesmo título de sakanas. Pois sim, a palavra já estava extrapolando seu sentido original, de sorte que há uma observação do citado Khafi Khan:

“Os ingleses agiam de maneira reprovável, do mesmo modo que os sakanas.”

Como se vê, tanto na forma quanto no conteúdo, o termo sakana do oriente está correlacionado com o outro, o sacana assimilado pelo ocidente. E mais, com o acréscimo da sacanagem e do sacanear, esse trio veio enriquecer a língua portuguesa. Contudo, nos dicionários, o verbete continua muito vago, como se percebe ao ler o Houaiss(5):

⊂ Sacana — adjetivo e substantivo de dois gêneros. / 1. Também que ou quem é libertino, devasso, sensual [uma alcoviteira de (pessoas) sacanas]. / 2. Também pejorativo: que ou quem tem mau caráter, que ou quem ludibria ou aufere vantagens que caberiam a outro(s); finório, espertalhão [aqui só tem comerciantes sacanas, querendo nos enganar], [não faça negócios com ele que aquilo é um sacana de marca]. / 3. Informal: que ou aquele que é brincalhão, de espírito crítico ou trocista, que faz comentários ou brincadeiras divertidos ou perversos, mas com graça, a respeito de seres ou de coisas; gozador. / 4. Por extensão; informal: qualquer pessoa [se aquele sacana aparecer, dê-lhe um abraço por mim]. || Etimologia: origem duvidosa.

Pimenteira-do-reino trepando numa árvore. / Ramo com pimenta./ Pimenta elaborada.

PIMENTA COM FORÇA

Como se verá adiante, o demoníaco sacana se disseminou pelo mundo e tem se mostrado de muita utilidade para atazanar as pessoas. No português, serve para adjetivar infindáveis coisas da natureza, o homem, o gato, o macaco, o escorpião, a urtiga, a água-viva, etc. Até mesmo uma pedra no caminho pode tê-lo como adjetivo. Nessa lista, caberia ainda a pimenta-do-reino, que embora não seja necessariamente sacana, pelo menos é fruto de uma trepadeira. Nesse aspecto, não se pode dizer o mesmo de outras pimentas

A planta produtora da pimenta-do-reino era conhecida como pipepeira negra, como esclarece o frei José Mariano Velloso, no livro “A Pipereira Negra”, editado em Lisboa, em 1798. Hoje, a espécie é cultivada em larga escala no Brasil, particularmente na Amazônia. Seu nome científico é Piper nigrum – pimenta negra , embora sofra variações na cor, dependendo do seu estado de maturação.

Post - JardineiroA guardiã das Marias-sem-vergonha querendo contratar jardineiro.

No rol dos vegetais, há também a Maria-sem-vergonha, uma espécie floral “libidinosa”, com o perdão da palavra. Essa Maria não tem limites e se alastra sem pudor, prolifera tão rápido que lhe deram o nome científico de Impatiens*. Popularmente é conhecida como beijo, pois basta que um simples raminho toque a terra, para dele nascer outra. Pior que ela só a tiririca(6)! Muito curioso é que as pimentas despertam com força o sentido do paladar, contudo prazerosamente, o que se torna uma sacanagem do bem. — * Impatiens walleriana.

Embora existissem várias qualidades de pimentas, tanto lá nas terras do oriente, quanto do ocidente, foram os portugueses os que mais contribuíram para espalhar algumas delas pelo mundo. Em Moçambique – ex-colônia africana de Portugal –, atualmente tem sido cultivada a espécie que é denominada piri-piri.

Em vários países da África dão esse nome às pimentas em geral. No caso da piri-piri moçambicana, trata-se da malagueta. Todas elas, devido ao cultivo e preparo, podem diferir em suas ardências ou, dizendo mais explicitamente, “quenturas”. É possível que piri-piri seja uma corruptela de piper – pimenta em latim – e, de onde também deriva a planta pipereira.

É de se notar que a palavra piri-piri é aparentada com pepper, que é pimenta em inglês. Simultaneamente, a palavra remete para o Old English (inglês antigo) pipor; relacionada com o Holandês peper e o Alemão Pfeffer; por via do Latim piper, mas assimilada do Grego pipéri, e que primeiramente foi pippali, no Sânscrito, língua ancestral da Índia e do Nepal.

Piri-piri Sacana Ai Ai: quentura portuguesa.

Atualmente, a malagueta ou piri-piri é embalada e comercializada em Portugal com o nome de Piri-Piri Sacana. Há vários tipos, para atender diferentes paladares e o mais “quente” é o da Piri-Piri Sacana, tipo Ai Ai, ou seja, de fazer qualquer boca pegar fogo. Na sua publicidade alertam:

Após o contato com a língua, rezar a todos os santos que acudam.”

Especialmente em Portugal, além de servir para adjetivar as malaguetas, usa-se o sacana, a sacanagem e o sacanear sem a menor cerimônia. Disso, um notável exemplo vem do filme norte-americano “Inglorious Basterds”, que lá recebeu o título de “Sacanas Sem Lei”. Entretanto, se vingar essa nova sinonímia, com bastardosacana tornando-se a mesma coisa, coitados dos pobres nascidos de mãe solteira. Estaria confirmada uma tremenda sacanagem!

Post - Sacanas sem leiInglorious Basterds (USA), Sacanas Sem Lei (Portugal).

Recentemente, alguns estudiosos(7) têm afirmado que xingar é ótimo. Dizem que os habituados a usar palavras de baixo calão têm melhor vocabulário e são mais verdadeiros.Além disso, ao colocar mais nuances na linguagem, se comunicam melhor, desenvolvem a autoestima e sentem menos dor. Ou seja, o termo sacana funciona como um excelente tempero do discurso que, entre outras coisas, faz muito bem à saúde. Mas não se deve abusar do remédio pois, como todos, tem efeitos colaterais e pode criar dependência…

Texto, pesquisa e arte de Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

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(1) POLO, Marco – (Veneza, * c.1254 / Veneza, †1324) Mercador, explorador e embaixador.

(2) Debal – Porto localizado próximo à moderna Karachi, capital da província de Sindh, no Paquistão.

(3) Sindh – A palavra deriva de Sindh, no Sânscrito, significando “rio caudaloso” que é uma referência ao Indus (nome dado pelos romanos), também denominado Sindhū. Este é um dos maiores rios da Ásia. Outra variação do nome é Sinda, no Assírio do século VII a.C.

(4) Khafi Khan ou Muḥammad Hāshim – (* c.1663 / †c.1731). Texto:“History of Alamgir”.

(5) HOUAISS, Antônio – “Grande Dicionário Houaiss”.

(6) Tiririca – Cyperus rotundus ou junça. O nome vem de tiri’rika“, no tupi, língua indígena do Brasil. Trata-se de planta miúda, perene e muito invasiva, que se reproduz por sementes, tubérculos e bulbos subterrâneos. É uma das espécies vegetais com maior distribuição no mundo, presente em 92 países (imagem ao lado).

(7) FONTES: JAY, Timothy – “Cursing in America – a Psycholinguistic Study of Dirty Language in the Courts, in the Movies, in the Schoolyards, and on the Streets”, John Benjamins Publishing, 1992. / Artigo: STEPHENS, Richard & UMLAND, Claudia – “Swearing as a Response to Pain – Effect of Daily Swearing Frequency”, School of Psychology, Keele University, Staffordshire, United Kingdom, 2011.

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