♦ Com culpa ou sem culpa
A fonte da luxúria em “O jardim das delícias” (por Hieronymus Bosch, 1515, detalhe).
Junto à minha simplesmente amiga e colega de trabalho, estava no cinema e perdi interesse pela exibição. Por isso, dormi. De repente, acordei aos sobressaltos e passei a ver na tela toda sorte de obscenidades. Tão incomodado fiquei que pedi à companheira para nos retirarmos, o que fizemos na maior correria.
Já do lado de fora, saímos em errante caminhar, de modo a abolir os maus pensamentos. Contudo, de repente, a amiga lembrou:
“- Cadê o seu queijo?”
Assustado lhe respondi:
“- Ai meu Deus, estava na sacola, pendurada no braço da poltrona! Esqueci naquele nojo de cinema, não volto lá, prefiro perder o queijo.”
Logo em seguida, percebi que havia pisado sem querer num monte de cocô de cachorro. Meu calçado estava imundo. O jeito foi me despedir da companheira e, assim, fui em correria a tratar do meu asseio. Disso vai que, daí a pouco, percebi u’a multidão entremeio ao meu caminho.
Todos se vestiam no capricho, talvez fossem roupas de festa. Os homens usavam turbantes e as mulheres escondiam o rosto com lenços. Pelos meus trajes, estava destoando dos demais, o que me causava um certo desconforto. Ademais, para completar, aquelas pessoas se mostravam muito bem-educadas, distintas!
Pois bem, assim mesmo prossegui junto a elas até que, subitamente, me deparei com um rio, onde encontrei o que procurava, água. Mas, devido à afobação, nele mergulhei de corpo inteiro. Porém, quando me esfriou a cabeça, bateu em mim um sentimento de vergonha. Que absurdo, a imundície do meu corpo turvara aquela limpidez azulada!
De qualquer maneira, após a limpeza, prossegui caminhando pela praia, então molhado pelas canelas. Desse modo, fui acompanhando os demais, que se dirigiam para não sei aonde. Porém, de repente, um homem chegou até mim, dizendo:
“- Conheço você de algum lugar, mas não me lembro do seu nome.”
Sem me esconder, lhe enviei a resposta:
“- Sou Fulano de Tal.”
Imediatamente, o interlocutor avançou na conversa, dizendo:
“Ah, olha só, você é da família De Tal! Conheci muito bem o seu pai.”
Daí, outras pessoas vieram a me rodear e a dizer da minha família. Uma: “- Conheci seu avô!” Outra: “Conheci seu bisavô.” E assim por diante. Isso me trouxe uma sensação de aconchego e, ao mesmo tempo, de ser benquisto, o que me colocou mais à vontade.
Éden (Paraíso) com rios Fison e Geon, desaguando no Golfo Pérsico & detalhe (Pieter Mortier, 1700).
Pois bem, aos poucos, fui tomando coragem e a um deles fiz duas perguntas:
“- Senhor, de onde veio? Que rio é esse, com essa água tão bonita de fazer doer os olhos?”
Logo, vieram respostas:
“- Vim do lado donde nasce o sol. Lá está minha morada, à qual chamamos país do Antanho. Agora, estou em retorno e vamos todos juntos para lá. Uma força poderosíssima está a nos mover! E mais, esclareço, aqui não é rio, é mar.”
Porém, minha curiosidade estava a pedir mais detalhes:
“- Então, qual o nome desse mar?”
E ele, solícito, informou:
“- É o do Antanho, melhor dizendo, mar do país do Antanho. Há quem traduza por outros nomes. Daqui a pouco vamos chegar ao rio Fison(1), que você conhece da Bíblia e, em seguida, prosseguiremos para o norte.”
Então retruquei:
“- Mas isso me parece um sonho!”
Imediatamente o instrutor completou:
“- Pode ser, entenda como quiser! Mas, vou lhe dizer mais… A partir de agora, exatamente deste ponto, tudo é livre e nada é forçado. Por outro lado, no domínio do Antanho você continua pecando, querendo ou não querendo. Independe de qualquer vontade, da sua ou de quem quer que seja, tanto faz. O pecado é inevitável!”
“- Mas como é isso? Seria o pecado original?” – indaguei, muito admirado.
Disse ele:
“- Vou explicar tudinho. Aqui no Antanho é onde se pode viver mesmo sem ter nascido, visto que esse lugar está situado muito aquém do útero materno. Por isso é que estamos sabendo dos seus antepassados, desde Adão e Eva.
E tem mais, há tempos já lhe disseram: no começo de tudo não havia pecado e ele só ocorreu depois que apareceu a víbora. Ela mesma está a nos comandar nessa caminhada, não há como escapar do pecado. Prepare-se!”
“Jardim das Delícias” (por Bosch, detalhe).
Então, sem esconder minha perplexidade, achei melhor mudar de assunto e passei a investigar o ambiente das águas. Logo nas primeiras observações, notei que toda aquela gente estava seminua. As vestes descompostas, mal cobrindo os corpos, permitiam inflamar o desejo dos caminhantes. Parecia muito com algumas pinturas que eu vira nos museus. Diante dessas evidências, me veio a certeza de que fôra transportado para os tempos do Velho Testamento.
Assim, tomado de estupor, prossegui numa sequência de emoções, enquanto descobria os segredos do Antanho e dos seus espíritos. E mais, entendi que não estava a conviver com pessoas de carne e osso, mas com u’a multidão de ectoplasmas*, que me provocavam com atitudes voluptuosas. De qualquer forma, minha aventura prosseguia dali rumo ao desconhecido e, pelo caminho, nada deixei passar despercebido, suponho. — * Ectoplasma: materialização do espírito.
Em certo momento, devido ao meu cansaço, entendi que já avançara muitas léguas acima do desaguadouro do rio Fison, região que bem descrevera o reverendíssimo bispo de Avranches(2). Até que tive mais uma surpresa, ao entender que estaria próximo do Paraíso Terrestre e seus anexos, tal como ouvira nas aulas de catecismo. De fato, não tardou para lá chegar, de verdade, na bendita terra do Antanho!
Nesse ponto, exausto precisei dormir, o que fiz debaixo de uma árvore. Depois fiquei sabendo, era uma tal de Árvore da Ciência*. Mas, tão logo me restabeleci da longa viagem, resolvi percorrer o território. Em todo lugar por onde passava, senti brisa refrescante, como também um cheiro de incenso. Essas coisas me remeteram para inúmeras passagens da Bíblia. E não é que estavam diante de mim algumas cenas arcaicas? — Gênesis 2:17 – […] Não comas do fruto da árvore da Ciência do Bem e do Mal, porque no dia em que comeres, certamente morrerás.”
Porém, devagar e sempre fui adiante, até que me deparei com um jovem anjo, cara de menino. Logo à primeira vista, me pareceu tê-lo conhecido antes, muito tempo atrás. De minha parte, me senti um ancião, é claro, mas tive dúvidas de como me via. Por isso, me manifestei:
“- Meu Deus! Há quanto tempo a gente não se vê, você por aqui? Estou rebuscando na memória e acredito que estivemos juntos há décadas. Fomos colegas no grupo escolar! Você me parece um anjo, o que anda fazendo por aqui?”
Imediatamente ele respondeu:
“- Não, você deve estar fazendo alguma confusão, sou o pintor Hieronymus Bosch(3) vestido em pele de anjo. Pouco tempo depois que aqui cheguei – em 1516 –, recebi vários encargos, de modo a pagar os meus pecados. O trabalho me rejuvenesce.”
Disse mais:
“Você está pisando no Paraíso Terrestre*, o mesmo que pintei em um quadro. Além dele, me deram a atribuição de tomar conta das suas cercanias. Sempre passo pelo Jardim das Delícias onde tento colocar limites no desvario que anda por lá e antes que vá todo mundo direto para o Inferno. Já avisei àquelas almas: vão acabar se dando mal…” — * Também conhecido como Jardim do Éden.
O inferno, tendo à direita um infeliz sendo devorado pelo “cobrador” (por Bosch, detalhe).
Tomado de susto, indaguei se aquilo seria o mesmo que vi num quadro em exibição no Museu do Prado(4) e assim fui esclarecido:
“- Isso mesmo, nessa ordem: Paraíso Terrestre, Jardim das Delícias e Inferno. Este fica mais embaixo, mas não se aproxime. É terrível!”
Verdade é que, ao ouvi-lo, senti um bafo de enxofre a exalar do chão. É claro, fiquei assustado, mas ao mesmo tempo bastante curioso. Então, pedi ao Anjo, digo pintor, que me contasse mais alguma coisa. E assim ele disse:
“- O Inferno é uma casa de portas abertas, contudo, quem lá entra nunca consegue sair e, mesmo que o consiga, logo estará de volta. O ambiente é excessivamente iluminado, é de uma claridade intensa e permanente, de fazer doer os olhos. Embora, eu o tenha representado mais escuro na minha pintura, foi por uma questão puramente estética.
Ele está repleto de almas errantes e desesperadas, porque sabem que nunca encontrarão livramento, embora as portas estejam sempre abertas. Quem lá está, perde a noção dos pontos cardeais, não sabe onde fica a direita ou a esquerda, nem a parte de cima ou a de baixo. Também não há como saber se lá fora é dia ou se é noite…”
Nesse momento, interrompi o Anjo com uma dúvida atroz:
“- Essa coisa da qual você fala mais parece um shopping center!”
Daí, ele foi breve e incisivo:
“- É isso mesmo!” – vou continuar explicando:
“- Quando a pessoa adentra nessa casa, imediatamente perde o pouco de razão que lhe resta. Em seguida, passa por um processo de imantação de modo grudá-la para sempre no Inferno. Mesmo que consiga fugir, logo volta, atraída por u’a máquina poderosíssima. Outra coisa: no Inferno, você fica muito excitado e começa a participar de tudo com exagero, pensando que está numa festa sem fim. É muito cansativo!”
E continuou:
“- Lá dentro, aos poucos você vai perdendo tudo que possui, até ficar completamente pelado. Mas, o pior é no momento do acerto de contas… Tem um cobrador velhaco que, tão logo você enfia o cartão de crédito na maquininha, ele lhe devora e não sobra nada.”
Logo em seguida, ao perguntar sobre o Purgatório, o Anjo não se fez de rogado e foi direto ao assunto:
“- Uai! Você ainda não desconfiou? Cada um tem o que merece. O seu fica lá longe, naquele pedaço de onde veio…”
O “Paraíso” de Adão e Eva (por Bosch, detalhe).
Realmente, tantas e sombrias revelações me afligiram, de tal modo, que pedi que mudássemos de assunto. Assim sendo, o Anjo passou a discorrer sobre amenidades, inclusive algumas da sua vida pregressa na Holanda. Contudo, ainda me atrevi a lhe fazer outra pergunta que me parecia importante:
“- E o Adão e a Eva, tem noticias deles?”
A resposta foi rápida e cristalina:
“- Infelizmente, não! Cometeram um delito muito grave e foram expulsos(5), e nunca mais soubemos deles.”
Disse mais:
“Agora, só vejo os descendentes e eles trouxeram do seu pedaço o pior de tudo. Sei que, entre aquele mundaréu de gente, ficaram mais aceites um monte de desvios de comportamento, por isso, estou tendo um trabalho dos diabos para avaliar o que é pecado com culpa ou pecado sem culpa.”
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• “Acta est fabula”: palavras da Roma antiga, que anunciavam o fim do espetáculo.
Por Eduardo de Paula
Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella
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(1) RIO FISON – “Gênesis 2.8 — Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado. / 2.9. O Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores, de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal. / 2.10. Um rio saía do Éden para regar o jardim, e dividia-se em seguida em quatro braços: 2.11. / O nome do primeiro é Fison, e é aquele que contorna* toda a região de Evilat, onde se encontra o ouro. / 2.12. O ouro dessa região é puro; encontra-se ali também o bdélio e a pedra ônix. / 2.13. O nome do segundo rio é Geon, e é aquele que contorna* toda a região de Cusch. / 2.14. O nome do terceiro rio é Tigre, que corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. / 2.15. O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo.” / * Contorna: leia-se percorre. — Fonte: Bíblia Católica Online.
(2) Bispo de Avranches (Saint Aubert – Santo Alberto) – (França, *c.670 / †c.715) Fundador do Monastério do Monte Saint-Michel, França.
(3) BOSCH, Hieronymus – (Bois-le-Duc, Holanda, *c.1450 / enterro: Bois-le-Duc, 09.08.1516).
(4) Museo del Prado, Madrid – Um dos mais importantes do mundo. / A obra em referência é conhecida como “O jardim das Delícias” (1490 – 1500). Compõe-se de três quadros unidos – tríptico –, cujo tema é a origem e o destino possível de parte da humanidade. Da esquerda para a direita: Éden, Jardim das Delícias e Inferno.
(5) A Bíblia sugere que Adão fugiu para o oriente além do Éden, uma vez que anjos ficaram a guarnecer a fronteira daquele lado. No Gênesis 2:24 está dito: “E expulsou-o; e colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados com uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida”.